São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
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Deus, se existe, não torce para nenhum time

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

""E o tal do mundo não acabou", como dizia aquele delicioso samba de Assis Valente.
A proximidade, ainda que imaginária, com o fim dos tempos me levou a refletir sobre o chamado sentimento religioso dos jogadores de futebol brasileiros.
Sempre tive a maior simpatia pelos gestos mágicos dos atletas em momentos importantes.
Houve uma época em que dez entre dez jogadores passavam a mão na grama e faziam o sinal da cruz ao entrar em campo (sempre com o pé direito) -e os goleiros "fechavam o gol" fazendo uma risca até a marca de pênalti, ou chutando as traves. Era mais ou menos como "fechar o corpo" na umbanda e no candomblé.
Tudo isso sem falar em fitinhas, figas, rezas -num ritual espelhado pelos torcedores, que não ficam atrás em termos de crenças, manias e "simpatias" para ajudar o time a vencer.
Nesses casos, aliás, pouco importa a formação intelectual ou a orientação filosófica do indivíduo: todos têm algum tipo de superstição, secreta ou declarada.
O grande cineasta Eduardo Coutinho, que acaba de fazer um filme sobre as crenças populares numa favela carioca, foi questionado por um de seus entrevistados: ""E você? Qual é a sua religião?"
Coutinho respondeu: "Não tenho religião nenhuma, mas no avião eu rezo para todos os santos". Acho que essa resposta resume o sentimento de muita gente.
O que ocorre hoje no futebol é que a religião, como todo o resto, virou mercadoria no imenso circo da mídia e do marketing.
Há, é claro, os jogadores evangélicos e os ""atletas de Cristo", que são sinceros em sua devoção.
Mas há também, em muitos casos, a utilização indiscriminada de crenças e símbolos para a promoção de uma certa imagem pública. Os torcedores geralmente sabem identificar os jogadores que usam o discurso religioso, mas agem em contradição com ele. Um caso que ganhou contornos curiosos foi o de Jorginho, hoje no São Paulo. Atleta de Cristo, ele foi interpelado durante a Copa de 94 por repórteres da Folha, que lhe perguntaram mais ou menos o seguinte: "Se você é tão cristão, por que dá tanta pancada nos adversários?".
Com magnífica auto-ironia, o então lateral da seleção respondeu: "Sigo o que está na Bíblia: é melhor dar do que receber".
Vários leitores têm me pedido para tratar desse tema na coluna. Não tenho muito a dizer a respeito, a não ser o seguinte: cada um tem o direito de acreditar no que bem entender, mas não o de se julgar melhor do que qualquer outra pessoa por causa disso.
Outra coisa: essa história de atribuir uma vitória ou um gol à ajuda de Deus, além de ser poucas vezes sincera, é uma "licença poética" inaceitável.
Pressupõe das duas uma: ou que Deus torce para o nosso time, ou que rezamos mais do que os adversários. Ora, você já tentou calcular quantos corintianos e quantos palmeirenses rezam por uma vitória antes de um clássico entre as duas equipes?
É pouco razoável supor que um deus vai perder tempo com essa aborrecida contabilidade antes de decidir para que time dará sua mãozinha providencial.
Não, minha gente, não dá. É melhor deixar Deus -ou os deuses, guias, orixás- em paz, para que possam tratar de assuntos mais sérios. Afinal, o mundo não acabou, mas não tem muito motivo para comemorar.

E-mail jgcouto@uol.com.br


José Geraldo Couto escreve aos sábados e às segundas-feiras


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