São Paulo, Domingo, 14 de Novembro de 1999
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A Luva de Alá

EDUARDO OHATA
enviado especial a Mar del Plata

""É Alá que, lá de cima, aperta os botões. Eu só concretizo seus desígnios. Nenhum ser humano poderia fazer por si só o mesmo que eu: ir dançando rumo ao tablado, entrar no ringue executando uma pirueta sobre a corda, confiante, nocautear os adversários e comemorar com saltos mortais."
A caminhada do pugilista britânico de origem árabe Naseem Hamed (33 vitórias com 29 nocautes e nenhuma derrota) rumo ao ringue, com um show de música, luzes e pirotecnia, demora bem mais do que as dos demais lutadores: no mínimo 10 minutos.
No mês passado, quando derrotou o mexicano Cesar Soto para anexar o cinturão dos penas do Conselho Mundial de Boxe ao da Organização Mundial de Boxe, que já estava em seu poder, seguiu ao ringue ao som de ""Thriller", de Michael Jackson.
O show prossegue durante a luta, com golpes lançados das posições mais inusitadas possíveis e esquivas dignas de uma demonstração de contorcionismo. Um estilo único, que deixa os rivais desorientados e inclui boa parte do tempo com a guarda abaixada.
""Sou um entertainer. Faço questão de oferecer ao público mais do que socos e esquivas."
Duas semana atrás, em Mar del Plata (Argentina), onde recebeu o prêmio de lutador do ano da OMB, o boxeador foi reconhecido em uma festa por fãs que pediam fotos ao lado dele.
Melhor pena do mundo na atualidade segundo os especialistas, Hamed gentilmente atendeu o pedido, mas antes pediu que sua taça de champanhe fosse substituída por outra contendo água (o consumo de álcool é proibido pela religião muçulmana).
É por causa dessas atitudes, que unem o que poderia ser chamado de ""marketing de Alá" a um comportamento que agrada aos jovens, que Hamed transformou Michael Jackson, Liam Gallagher, vocalista do Oasis, e o rapper Puff Daddy, entre outros, em fãs.
Seu estilo e comportamento, porém, não seduzem os mais conservadores, como o veterano colunista esportivo Jack Fiske.
""Ele luta como um palhaço. Se aparecesse com o rosto pintado e com um nariz vermelho, não me surpreenderia", criticou Fiske.
Uma publicação norte-americana especializada em boxe nomeou o filho de imigrantes do Iêmen como o ""rei da popularidade", porque os índices de audiência de suas apresentações na rede de TV a cabo HBO rivalizam aos dos combates do ""chicano" Oscar de la Hoya, na mesma emissora.
Esses números não passam despercebidos pela empresa, que firmou com Hamed, 25, um milionário contrato, além de ter gasto US$ 12 milhões com publicidade para sua estréia nos EUA, em 97.
Estimativas de um ex-membro de sua equipe, o auto-intitulado ""príncipe que nasceu para ser rei" estaria recebendo, por cada defesa de cinturão, bolsas de US$ 6,5 milhões.
Ele é o boxeador de origem árabe mais conhecido nos EUA desde o ex-campeão dos médios Mustafa Hamsho, que lutou na década passada.
""Não foi problema conquistar o mercado americano. É Sha Alá (pela vontade de Deus). Provarei a todos na América que sou o melhor lutador do mundo."
Apesar de, no momento, estar se concentrando no público dos EUA, a comunidade muçulmana permanece fiel. E o irmão e empresário de Hamed, Riath, sabe capitalizar.
No mês passado, em Detroit (EUA), onde unificou títulos com o mexicano Cesar Soto, Hamed atraiu 12 mil pessoas à arena Joe Louis.
Detroit tem uma das maiores comunidades muçulmanas do mundo (cerca de 300 mil pessoas) fora do Oriente Médio.
Riath antecipou sua chegada e entregou aos comerciantes muçulmanos ingressos para que fossem vendidos em consignação.
O presidente do Iêmen, Ali Abdullah Salem, nutre especial carinho por Hamed, presenteando-lhe com jóias e carros.
A vila onde a família de Hamed morava nunca contou com eletricidade ou água encanada. Bastou que o lutador conversasse com Salem para que num prazo de 48 horas o dirigente providenciasse que a infra-estrutura apropriada fosse instalada.
O temperamento de Hamed, um dos principais motivos de seu sucesso no ringue, também o impulsiona a tomar decisões impetuosas em sua vida privada.
Apesar de afirmar que tem ilimitada admiração pelos pais, o lutador nem se deu ao trabalho de avisar quando se casou com uma garota de credo distinto do seu.
Apesar de ter consciência de que é um modelo para a juventude do Iêmen e do Reino Unido (onde vivem cerca de 1 milhão de muçulmanos), ocupou os jornais ao brigar com funcionários no aeroporto de Londres quando uma arma foi descoberta escondida na bagagem. As multas por dirigir acima do limite de velocidade também são comuns.
Em 98, Hamed quase protagonizou uma briga de rua. Ao encontrar o ex-campeão Chris Eubank, 30 quilos mais pesado que ele, o desafiou.
""Tenho algo que você não tem", disse, com ironia, o campeão, para então jogar seus cinturões próximos ao local onde seu compatriota estava.
""Não importa se você é um pena, um cruzador ou mesmo King Kong. Com a pegada que tenho, se acerto um golpe, você cai."
Para divulgar ainda mais o poder de Alá, o boxeador almeja ser o primeiro a unificar os cinturões das quatro principais entidades em uma mesma categoria.
""Faltam agora o da Federação Internacional e o da Associação Mundial. Quero provar que sou o melhor pena que já caminhou sobre a Terra."
Não fosse a política, Hamed há tempos já teria alcançado seu objetivo, pois já conquistou os principais títulos, somente para perdê-los depois no tapetão.
O britânico bateu o compatriota Steve Robinson para conquistar seu primeiro cinturão dos penas, o da OMB, em 1995.
Depois, anexou o título da FIB, nocauteando o norte-americano Tom Johnson, em 1997.
No ano seguinte, venceu o porto-riquenho Wilfredo Vazquez, que foi destituído do cinturão da AMB justamente por assinar contrato para unificar os cinturões com o pugilista inglês.
Hamed corre agora o risco de perder o do CMB -que ordenou que abandonasse o título da OMB até o final do mês.
""Quando for a hora, vou subir de peso uma vez mais e vencer todos os superpenas (categoria na qual o brasileiro Acelino Freitas, o Popó, é campeão pela OMB). Não tenho medo de ninguém, a única coisa que temo é Alá."


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