São Paulo, Domingo, 15 de Agosto de 1999
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Atacantes de Hitler

Reprodução
Atletas da Alemanha entram no gramado do estádio de Munique para jogo amistoso com a Finlândia, em 1935



Livro publicado na Alemanha mostra cotidiano do futebol na Segunda Guerra e como o governo nazista manipulava a seleção do país em sua propaganda de guerra e da superioridade alemã


SYLVIA COLOMBO
de Londres

"Nenhum jogador que fizesse parte daquele time poderia dizer que as coisas eram normais. Tudo era pura propaganda."
O depoimento de Albert Sing, 82, meio-campista da seleção alemã em 1941 e 42, é um entre as dezenas que Ulrich Lindner e Gerhard Fischer, jornalistas esportivos, colheram de jogadores e técnicos que atuaram no país durante o nazismo (1933-45).
O resultado de sete anos de trabalho se transformou no livro "Hitler's Strikers" (em português, ""Os Atacantes de Hitler"), lançado em julho na Alemanha e que deve ser publicado em inglês ainda neste ano.
O painel de relatos pessoais, cartas e documentos oficiais de clubes, associações e autoridades locais reunidos revela que a cúpula do governo comandado por Adolf Hitler (1889-1945) utilizou o futebol de duas maneiras.
Por um lado, a modalidade servia para distrair a opinião pública do país, cansado dos relatos de guerra. "Uma vitória no campo de futebol é mais importante para a população do que a conquista de uma cidade em território inimigo", escreveu em seu diário Joseph Goebbels (1897-1945), ministro da Propaganda. O segundo homem do regime nazista registra isso em 7 de agosto de 1938, quando vê a multidão entristecida deixar o estádio após a Alemanha ser eliminada do futebol como anfitriã da Olimpíada de 1936.
Por outro, a seleção teria de mostrar para os países satélites ou que seriam invadidos a superioridade alemã. Essa regra só era quebrada em nome da propaganda.
Se, na maioria das vezes, as derrotas eram consideradas verdadeiras vergonhas nacionais, em outras ocasiões, o time era levado a facilitar o jogo para atender a demandas políticas.
Assim aconteceu às vésperas do plebiscito austríaco que definiria a anexação do país à Alemanha, conhecido como o "Anchluss".
Em uma partida amistosa em Viena, um selecionado da Alemanha foi orientado pelo governo a jogar "um futebol bonito e pouco agressivo", como definiu o jogador Herbert Moll, então atacante do Bayern de Munique.
A Áustria venceu por 2 a 0, e algumas semanas depois a maioria do povo austríaco votou a favor do "Anchluss".
A investigação de Lindner, jornalista free-lancer, e Fischer, editor de esportes do jornal "Süddeutsche Zeitung" (Munique), mostra que, para a seleção refletir um país forte e imbatível, os jogadores passaram a receber prêmios extras. Havia também punição salarial para as más atuações.
A idéia era fazer com que a intimidação política dos países europeus viesse referendada por uma uma vitória no gramado. Dessa forma, os triunfos bélicos seriam mais facilmente assimilados pela população por meio do esporte.
A invasão da Dinamarca (maio de 1940) foi traduzida sete meses depois com uma vitória por 1 a 0 em Hamburgo.

Fracassos e proibição
Dos 34 jogos que a Alemanha fez durante o conflito mundial, só perdeu em 8 oportunidades. Caiu uma vez diante da Hungria (país satélite) e outra da Itália (nação aliada). E perdeu duas para a Iugoslávia (que depois seria invadida) e também para a Suíça e a Suécia, ambas neutras na guerra.
Uma derrota para os suecos em setembro de 1942 -3 a 2, em Berlim- fez Goebbels proibir o time nacional de jogar. A equipe fez ainda mais três jogos, todos longe da capital do Terceiro Reich (Berna, Stuttgart e Bratislava).
A proibição da seleção coincide com os primeiros reveses bélicos. Afinal, a partir de 1943, os alemães começam a retroceder.
Na esfera interna, porém, o futebol, que serviria para manter a atenção popular distanciada do cotidiano da guerra, resistiu em sua função até 1944.
Houve competição nacional e regional durante todo o conflito, até às vésperas da invasão das tropas aliadas, que vieram selar a derrota alemã.
Goebbels escreveu em seu diário, cujos excertos estão em "Hitler's Strikers", que o futebol fazia com que as pessoas sofressem menos com o cenário de um país em guerra, um dia-a-dia composto de dificuldades de abastecimento, filhos mortos ou correndo riscos nos campos de batalha.
Segundo Lindner e Fischer, o objetivo interno foi relativamente atingido. Os campeonatos locais continuaram populares até o fim do conflito. A mídia esportiva era orientada a reservar bastante espaço em jornais e noticiários de rádio para a cobertura das disputas, além de estimular a venda de ingressos a preços acessíveis.
Internacionalmente, porém, o plano falhou, pois a seleção alemã, ainda que estimulada por prêmios e orientações militares, não conseguia ser tão imbatível como o Führer queria.
O futebol repetiu as mesmas deficiências anteriores à guerra.
Em 1936, por exemplo, a Olimpíada de Berlim foi encarada pela liderança nazista como uma excelente oportunidade para fazer propaganda política da superioridade alemã e da ""raça ariana".
Uma boa performance no esporte refletiria as qualidades do povo alemão e, posteriormente, as do exército em ação. ""O esporte tem um objetivo: fortalecer o caráter, o espírito de luta e a camaradagem, para que o povo alemão se perpetue", disse Goebbels em um discurso de 1933.
O próprio Hitler, que não gostava de futebol particularmente, presenciou a partida contra a Noruega que marcou a despedida da seleção do torneio olímpico.
Os noruegueses fizeram 1 a 0 aos 6min de jogo e marcaram o segundo gol aos 40min do segundo tempo, quando o Führer, contrariado, deixou o estádio.
O vencedor do torneio viria a ser a Itália, mas a péssima atuação da seleção alemã contra a Noruega ficou marcada na memória dos líderes nazistas.
Apesar de não acompanhar futebol, Hitler queria que a sede da Fifa, máxima entidade do futebol mundial, se transferisse de Paris para Berlim. E também cobiçava a taça Jules Rimet, que esteve escondida durante o conflito.

Anexação de astros
Para a Copa do Mundo de 1938, a Alemanha foi a campo com sete jogadores da anexada Áustria. Apesar do gol do austríaco Hahnemann, a seleção perdeu por 4 a 2 para a Suíça e foi eliminada.
E Hahnemann se transformou no artilheiro alemão no período 1938-1945, com 15 gols -6 deles marcou em um 13 a 0 sobre a Romênia em setembro de 1940.
Nessa partida, fez seus primeiros dois gols pela seleção o meia Fritz Walter, que em 1954 levantaria o troféu Jules Rimet com a conquista da primeira Copa do Mundo pela Alemanha Ocidental.
A tentativa de fortalecer a seleção, reunindo jogadores dos dois países, com o objetivo de selar no gramado a aliança militar, apresentaria à Europa uma nova potência política e esportiva.
Mas, segundo os autores do livro, a experiência fracassou por causa do aumento da competitividade entre jogadores e técnicos.
"Eram, então, muitos jogadores para um número menor de vagas, o que gerou conflito. Além disso, os dois times eram tecnicamente diferentes, e os treinadores entraram em desacordo logo a princípio", afirma Lindner.
Como os atletas, os clubes e as federações da Áustria foram acoplados ao Campeonato Alemão e à Copa da Alemanha.
Times vienenses, como Rapid, First e Admira, chegaram até a disputar finais e levantaram títulos alemães.

Aulas de nazismo
Para convencer os jogadores a atingir os alvos políticos da cúpula nazista, foram usadas algumas artimanhas.
A primeira delas foi a inserção nos times de "agentes" do governo, que tentavam incutir a ideologia nazista por meio de conversas e palestras.
"Tínhamos aulas todas as terças-feiras depois do treino", lembra Herbert Moll. "Fazíamos um teste de política também. Aqueles que passavam ganhavam um carimbo em sua carteira de jogador e podiam continuar atuando. Aqueles que falhavam eram sacados do time imediatamente."
Moll conta em seu depoimento que os jogadores que se mostravam de acordo com a ideologia nazista recebiam tíquetes de alimentação, passes de metrô e um bônus em dinheiro a cada partida.
Lindner e Fischer acreditam que os jogadores sabiam que estavam sendo manipulados, mas que não entendiam a situação de maneira ampla. "Eram iletrados em geral, percebiam a maquinação por trás, mas poucos saberiam fazer uma análise real da situação."

Perseguição aos judeus
O livro mostra também como se deu o desaparecimento dos judeus do futebol alemão.
Perseguidos a partir de 1933 e banidos de todos os esportes a partir de 1935, os jogadores judeus ficaram desempregados e caíram no ostracismo.
Só da federação de futebol, foram desfiliados mais de 300 futebolistas de origem judia.
Com o acirramento da perseguição nazista nos anos seguintes, muitos foram parar nos campos de concentração e poucos conseguiram escapar.
No currículo mirrado do futebol alemão até ali, um judeu tinha feito história. Foi Gottfried Fuchs, que na Olimpíada de 1912 (Estocolmo) marcou dez gols na vitória por 16 a 0 sobre a Rússia czarista, estabelecendo um recorde.
Já em final de carreira, Fuchs, quando viu Hitler ascender ao poder em 1933, conseguiu escapar para o Canadá.
Mesma salvação não teve o goleiro Julius Hirsch, companheiro de Fuchs na campanha olímpica.
Hirsch não acreditava que os nazistas pudessem mandá-lo para um campo de concentração, protegido em sua condição de esportista muito popular.
Em 1º de março de 1943, ele foi preso e enviado para Auschwitz. Dias depois, ele mandou um cartão postal para sua filha e nunca mais se ouviu falar dele.


Colaborou Rodrigo Bertolotto, da Reportagem Local

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