São Paulo, terça, 15 de setembro de 1998

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A visita do velho senhor

JOSÉ ROBERTO TORERO
da Equipe de Articulistas

Era meia-noite. Estava sozinho em casa, na frente do computador. Pensava, sem inspiração, sobre o que escrever nesta coluna. Como as idéias não vieram, acabou vindo o sono; não resisti e, ali mesmo, dei uma cochilada.
Fui acordado por uma voz estranha e rouca. Quando abri os olhos, vi a figura de um velho barbudo e pálido.
"São Pedro?!"
"Calma", ele disse sorrindo. "Estou longe de ser um santo."
"Então é o demônio?"
"Também não. Sou o fantasma do barão de Itararé."
A revelação me deixou pasmo e emocionado. Emocionado porque era uma honra estar em frente a Aparício Torelly, o barão de Itararé, jornalista que fez grande sucesso nas décadas de 40 e 50, época em que publicou o satírico "A Manha". Pasmo por sentir que a mão dele era feita de nada e eu tinha apertado o ar.
Vendo meu embaraço, ele explicou sua presença:
"Outro dia você estava lendo algumas daquelas velhas bobagens que escrevi. Como é raro que alguém me leia hoje em dia, resolvi dar um pulo para conhecê-lo pessoalmente."
Essa frase me deixou mais tranquilo. Ele não estava ali para me assombrar. Tentei ser educado e o convidei para tomar uma cerveja. Ele aceitou e exigiu que ela estivesse bem gelada. Enquanto bebia, eu podia ver o líquido passar pelo corpo de vapores e esparramar-se no chão. Lucimar, minha faxineira, ia ficar louca.
"É, meu caro", disse ele, "definitivamente o fígado faz muito mal à bebida..."
Não sei se o leitor já esteve diante de um fantasma. Se não, lembre-se: aja com naturalidade e sirva-lhe uma cerveja. Ele soltou a língua e conversamos como velhos amigos.
"Pois, é, barão, eu escrevo sobre esportes."
"Sabe como defino o esporte? Esporte é tudo aquilo que fazemos para deixar de fazer aquilo que deveríamos fazer."
"No seu tempo o esporte era uma atividade marginal, mas hoje ele é importante na nossa sociedade. Os jogos são transmitidos pela TV, os jogadores ganham fortunas..."
"E jogam como no meu tempo? Há um Zizinho, um Jair?"
"Bom...."
"Eu suspeitava: o trabalho enobrece o homem, mas depois que o homem se sente nobre não quer mais trabalhar."
"Tudo bem, mas a culpa nem sempre é dos jogadores. A última Copa, por exemplo, perdemos por causa do Zagallo..."
"Zagallo!? Aquele ponta do Botafogo que usava cabelo escovinha e tinha medo de ir à linha de fundo?"
"Esse mesmo. Nosso técnico."
"Se dependesse dos técnicos, os besouros não voavam."
"Ele não armou direito o time e nós tomamos 3 a 0 da França."
"É como sempre digo: de onde menos se espera, daí é que não sai nada mesmo."
Depois disso, levantou-se, esticou os braços e disse:
"Hora de ir."
"Mas é cedo", respondi.
"Por isso mesmo. As visitas, alegrias me dão. Umas quando vêm, outras quando vão."
E então desapareceu. Corri para o computador e escrevi sobre o que aconteceu. Não é todo dia que um espírito vem ajudar minha falta de idéias.


José Roberto Torero escreve às terças e aos sábados
E-mail: torero@uol.com.br


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