São Paulo, sábado, 16 de abril de 2005

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FUTEBOL

As palavras e as coisas

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

O alarde provocado pelo episódio Desábato, com manifestações apaixonadas a favor ou contra a prisão do jogador argentino, revela o quanto a questão é delicada.
Compreendo e respeito a opinião de quem considerou exagerada a punição a Desábato. Juca Kfouri, José Trajano, Tostão, Marcelo Tas, entre outros, defenderam esse ponto de vista.
Concordo que o atleta talvez esteja sendo usado como bode expiatório de um ressentimento ancestral contra os argentinos. Há também evidências de que muita gente -a começar do ministro do Esporte, Agnelo Queiroz- está pegando carona no episódio para se promover.
Exagero, rancor, oportunismo, hipocrisia. Tudo isso é verdade. Marcelo Tas lembrou que o apelido do atacante brasileiro ofendido -Grafite- já é um reflexo do nosso próprio racismo de cada dia.
Mas é disso que eu quero partir para ressaltar o que há de positivo no episódio. Estamos tão imersos em preconceitos historicamente adquiridos que encaramos as ofensas de fundo racial ou étnico como coisas banais. Qualquer reação a esses comportamentos discriminatórios automáticos, quase inconscientes, é tachada de "modismo do politicamente correto".
Esse é um terreno movediço, no qual é recomendável pisar com muito cuidado.
A língua, sobretudo na comunicação oral, é um organismo vivo, em permanente transformação.
As palavras têm um peso, carregam uma história. Pulsam nelas todas as trocas materiais e simbólicas entre os indivíduos e os grupos.
Uma mesma palavra pode ter seu sentido invertido ao se deslocar de um contexto a outro, de uma boca a outra. Às vezes uma mudança sutil de inflexão vira do avesso o significado de um termo.
Entre o "minha nega" dito com afeto por um homem apaixonado e o "sua negra" dito com rispidez por uma patroa há um abismo cavado por séculos de história.
Ao assumir o apelido Grafite como seu "nome artístico", o jogador do São Paulo de certo modo legitimou o termo, mudando seu sinal. O que era para ser uma ofensa passou a ter um valor positivo. Grafite, aliás, é uma cor muito bonita. Pergunte aos designers, cenógrafos e decoradores.
As palavras nunca são inocentes. A pessoa que inventou o termo "ecochato", por exemplo, causou um grande desserviço à preservação do meio ambiente. Agora, quando se quer desqualificar um movimento ambiental, é só dizer: "Lá vêm os ecochatos".
Entre os exageros do politicamente correto (querer que usemos "afro-brasileiro" em vez de "negro", por exemplo) e a ironia confortável de quem nunca sentiu na pele a discriminação, é difícil encontrar o caminho do meio.
Mas, se for preciso optar, é melhor o exagero que a omissão. Desábato foi pego para Cristo, mas essa injustiça pontual não será em vão se ajudar a combater injustiças muito mais graves e profundas.

Sem fronteiras
O caso Desábato eclipsou a selvageria da torcida da Inter de Milão no derby contra o Milan. Que sirva de lição para os que, em nome da segurança nos estádios, sugerem a elevação do preço dos ingressos, como se houvesse uma correlação direta entre pobreza e violência. O ingresso na Itália é caríssimo. Milão é a capital italiana da elegância. A estupidez não tem fronteiras de país nem de classe.

Lavagem escondida
Ficou também em segundo plano a conclusão do Ministério Público paulista de que há indícios de lavagem de dinheiro na parceria MSI-Corinthians. Muitos torcedores não entendem, mas é possível ser corintiano e desejar que os fatos sejam esclarecidos e a lei seja cumprida.


E-mail: jgcouto@uol.com.br

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