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FUTEBOL
As palavras e as coisas
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
O alarde provocado pelo
episódio Desábato, com manifestações apaixonadas a favor
ou contra a prisão do jogador argentino, revela o quanto a questão é delicada.
Compreendo e respeito a opinião de quem considerou exagerada a punição a Desábato. Juca
Kfouri, José Trajano, Tostão,
Marcelo Tas, entre outros, defenderam esse ponto de vista.
Concordo que o atleta talvez esteja sendo usado como bode expiatório de um ressentimento ancestral contra os argentinos. Há
também evidências de que muita
gente -a começar do ministro do
Esporte, Agnelo Queiroz- está
pegando carona no episódio para
se promover.
Exagero, rancor, oportunismo,
hipocrisia. Tudo isso é verdade.
Marcelo Tas lembrou que o
apelido do atacante brasileiro
ofendido -Grafite- já é um reflexo do nosso próprio racismo de
cada dia.
Mas é disso que eu quero partir
para ressaltar o que há de positivo
no episódio. Estamos tão imersos
em preconceitos historicamente
adquiridos que encaramos as
ofensas de fundo racial ou étnico
como coisas banais. Qualquer
reação a esses comportamentos
discriminatórios automáticos,
quase inconscientes, é tachada de
"modismo do politicamente correto".
Esse é um terreno movediço, no
qual é recomendável pisar com
muito cuidado.
A língua, sobretudo na comunicação oral, é um organismo vivo,
em permanente transformação.
As palavras têm um peso, carregam uma história. Pulsam nelas
todas as trocas materiais e simbólicas entre os indivíduos e os grupos.
Uma mesma palavra pode ter
seu sentido invertido ao se deslocar de um contexto a outro, de
uma boca a outra. Às vezes uma
mudança sutil de inflexão vira do
avesso o significado de um termo.
Entre o "minha nega" dito com
afeto por um homem apaixonado
e o "sua negra" dito com rispidez
por uma patroa há um abismo
cavado por séculos de história.
Ao assumir o apelido Grafite como seu "nome artístico", o jogador do São Paulo de certo modo
legitimou o termo, mudando seu
sinal. O que era para ser uma
ofensa passou a ter um valor positivo. Grafite, aliás, é uma cor muito bonita. Pergunte aos designers,
cenógrafos e decoradores.
As palavras nunca são inocentes. A pessoa que inventou o termo "ecochato", por exemplo, causou um grande desserviço à preservação do meio ambiente. Agora, quando se quer desqualificar
um movimento ambiental, é só
dizer: "Lá vêm os ecochatos".
Entre os exageros do politicamente correto (querer que usemos "afro-brasileiro" em vez de
"negro", por exemplo) e a ironia
confortável de quem nunca sentiu
na pele a discriminação, é difícil
encontrar o caminho do meio.
Mas, se for preciso optar, é melhor o exagero que a omissão. Desábato foi pego para Cristo, mas
essa injustiça pontual não será
em vão se ajudar a combater injustiças muito mais graves e profundas.
Sem fronteiras
O caso Desábato eclipsou a selvageria da torcida da Inter de
Milão no derby contra o Milan.
Que sirva de lição para os que,
em nome da segurança nos estádios, sugerem a elevação do
preço dos ingressos, como se
houvesse uma correlação direta
entre pobreza e violência. O ingresso na Itália é caríssimo. Milão é a capital italiana da elegância. A estupidez não tem fronteiras de país nem de classe.
Lavagem escondida
Ficou também em segundo plano a conclusão do Ministério
Público paulista de que há indícios de lavagem de dinheiro na
parceria MSI-Corinthians.
Muitos torcedores não entendem, mas é possível ser corintiano e desejar que os fatos sejam esclarecidos e a lei seja
cumprida.
E-mail: jgcouto@uol.com.br
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