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"Em vez de morrer, consegui respirar o ar de Nazaré"
TOM ZÉ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Brasileiros, jogadores e torcida,
entraram na Copa de 50 com
muita esperança.
Até 1949 a seleção costumava
perder para a Argentina e o Uruguai no futebol e na porrada e
malmente empatava com o Paraguai. Na seleção de 49 inaugurou-se uma condição até então inesperada no futebol brasileiro: no
Campeonato Sul-Americano, disputado no estádio de São Januário, nosso time começou a pintar
os canecos. Placares de 9 a 1, de 10
a 1, em cima de equipes sul-americanas frágeis.
Além de um acontecimento absolutamente igual ao da decisão
com o Uruguai, em 16 de julho de
50, no Maracanã. Premonitória
simetria.
Esse antecedente foi assim: nesse Sul-Americano, em 49, depois
de tanta goleada, esperava-se que
o Brasil ganhasse facilmente do
Paraguai, com quem foi para a final da disputa.
Tal como aconteceria em 50,
perdemos de 2 a 1. Só que em 49 a
derrota nos colocava empatados
com o próprio Paraguai e no desempate, dois dias depois, ganhamos, de 7 a 1, mantendo o padrão
das lavadas.
Entramos em 1950 com otimismo, imagine-se quanto.
Na década de 40 não houvera
Copa do Mundo por causa da
guerra. Os países da Europa ainda
estavam se reorganizando.
E o Brasil, com um time excepcional, tinha toda a oportunidade
de vitória fácil.
Em junho de 50 foram minhas
primeiras férias de ginásio. Eu tinha 12 anos e fui feriar em Nazaré
das Farinhas, terra de Vampeta,
onde morava meu tio João Santana, coletor federal, troncudo,
meia-esquerda que jogava avançado.
Tinha uma canhota poderosa,
que depois de vinte metros de
percurso chegava ao gol ainda a
dois palmos de altura, e era um
terror para os goleiros.
Quando cheguei para essas férias, tio João já se aposentara das
lides atléticas e não pude testemunhar a excelência que corria bocas
e memórias em Nazaré das Farinhas, no Recôncavo Baiano.
A Copa começou, e a seleção
brasileira mostrava-se realmente
excepcional.
As faltas que Jair da Rosa Pinto
cobrava derrubavam goleiros. Zizinho aturdia os cronistas da Inglaterra. Ademir "Queixada", o
pernambucano, substituía com
grande vantagem Heleno de Freitas, do Botafogo. Danilo, do Vasco, era um center-half e tanto.
Com tanto plantel, demos surras gloriosas na Iugoslávia e na
Espanha, nas semifinais e nas finais.
Aliás, no jogo com a Espanha,
nasceu a brincadeira-tripúdio do
"olé". Pobre equipe espanhola,
além de tudo com um goleiro chamado Ramalhete!
O Brasil, com seu time imbatível, esquadra insubmersível destinada à flor das águas, nunca ao limo do fundo, foi para a final com
o Uruguai.
O primeiro tempo terminou zero a zero. Aos cinco do segundo
tempo, um gol de Friaça, a bola
entrou batendo no chão devagarinho.
Ouvíamos o jogo pelo rádio, é
claro. Mas imaginação estimulada não faltava, e com ela participávamos de cada movimento de
bola e pernas no campo.
Fabricávamos imagens visuais,
verbais, interferíamos nas jogadas, fique quieto, menino, por
acaso é você o locutor?, meu tio
João Santana subindo numa cadeira, tirando a camisa social
branca, girando no ar a improvisada bandeira.
O empate daria a Copa ao Brasil,
e ele gritava: "Agora eles têm de
fazer dois".
E fizeram.
Pensei que o mundo ia se acabar. Que nunca mais poderíamos
ser campeões do mundo.
Em "Os sofrimentos do jovem
Werther", de Goethe, a desilusão
amorosa é um escorregador líquido e certo para a morte.
Como tantos apaixonados que,
passado o tempo, recorrem à ironia, lembro-me, hoje, do espanto
sofrido, não apenas sentido, ao
sair pela rua, depois do jogo e, em
vez de morrer, conseguir respirar
o ar da tarde de Nazaré das Farinhas.
Tom Zé, 63, é músico e compositor
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