São Paulo, domingo, 16 de julho de 2000


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"Em vez de morrer, consegui respirar o ar de Nazaré"

TOM ZÉ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Brasileiros, jogadores e torcida, entraram na Copa de 50 com muita esperança.
Até 1949 a seleção costumava perder para a Argentina e o Uruguai no futebol e na porrada e malmente empatava com o Paraguai. Na seleção de 49 inaugurou-se uma condição até então inesperada no futebol brasileiro: no Campeonato Sul-Americano, disputado no estádio de São Januário, nosso time começou a pintar os canecos. Placares de 9 a 1, de 10 a 1, em cima de equipes sul-americanas frágeis.
Além de um acontecimento absolutamente igual ao da decisão com o Uruguai, em 16 de julho de 50, no Maracanã. Premonitória simetria.
Esse antecedente foi assim: nesse Sul-Americano, em 49, depois de tanta goleada, esperava-se que o Brasil ganhasse facilmente do Paraguai, com quem foi para a final da disputa.
Tal como aconteceria em 50, perdemos de 2 a 1. Só que em 49 a derrota nos colocava empatados com o próprio Paraguai e no desempate, dois dias depois, ganhamos, de 7 a 1, mantendo o padrão das lavadas.
Entramos em 1950 com otimismo, imagine-se quanto.
Na década de 40 não houvera Copa do Mundo por causa da guerra. Os países da Europa ainda estavam se reorganizando.
E o Brasil, com um time excepcional, tinha toda a oportunidade de vitória fácil.
Em junho de 50 foram minhas primeiras férias de ginásio. Eu tinha 12 anos e fui feriar em Nazaré das Farinhas, terra de Vampeta, onde morava meu tio João Santana, coletor federal, troncudo, meia-esquerda que jogava avançado.
Tinha uma canhota poderosa, que depois de vinte metros de percurso chegava ao gol ainda a dois palmos de altura, e era um terror para os goleiros.
Quando cheguei para essas férias, tio João já se aposentara das lides atléticas e não pude testemunhar a excelência que corria bocas e memórias em Nazaré das Farinhas, no Recôncavo Baiano.
A Copa começou, e a seleção brasileira mostrava-se realmente excepcional.
As faltas que Jair da Rosa Pinto cobrava derrubavam goleiros. Zizinho aturdia os cronistas da Inglaterra. Ademir "Queixada", o pernambucano, substituía com grande vantagem Heleno de Freitas, do Botafogo. Danilo, do Vasco, era um center-half e tanto.
Com tanto plantel, demos surras gloriosas na Iugoslávia e na Espanha, nas semifinais e nas finais.
Aliás, no jogo com a Espanha, nasceu a brincadeira-tripúdio do "olé". Pobre equipe espanhola, além de tudo com um goleiro chamado Ramalhete!
O Brasil, com seu time imbatível, esquadra insubmersível destinada à flor das águas, nunca ao limo do fundo, foi para a final com o Uruguai.
O primeiro tempo terminou zero a zero. Aos cinco do segundo tempo, um gol de Friaça, a bola entrou batendo no chão devagarinho.
Ouvíamos o jogo pelo rádio, é claro. Mas imaginação estimulada não faltava, e com ela participávamos de cada movimento de bola e pernas no campo.
Fabricávamos imagens visuais, verbais, interferíamos nas jogadas, fique quieto, menino, por acaso é você o locutor?, meu tio João Santana subindo numa cadeira, tirando a camisa social branca, girando no ar a improvisada bandeira.
O empate daria a Copa ao Brasil, e ele gritava: "Agora eles têm de fazer dois".
E fizeram.
Pensei que o mundo ia se acabar. Que nunca mais poderíamos ser campeões do mundo.
Em "Os sofrimentos do jovem Werther", de Goethe, a desilusão amorosa é um escorregador líquido e certo para a morte.
Como tantos apaixonados que, passado o tempo, recorrem à ironia, lembro-me, hoje, do espanto sofrido, não apenas sentido, ao sair pela rua, depois do jogo e, em vez de morrer, conseguir respirar o ar da tarde de Nazaré das Farinhas.


Tom Zé, 63, é músico e compositor



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