São Paulo, domingo, 17 de janeiro de 2010

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TOSTÃO

Linear e tecnicamente correto

Progressivamente, o futebol torna-se um jogo de passes curtos, para o lado, previsíveis e tecnicamente corretos

APRENDI na medicina, mais como médico e professor do que como aluno, que não se deve transportar o que está escrito nos livros para todos os pacientes.
Os sintomas do doente, que são só dele, é que devem ser comparados com o que está nos livros. Dois pacientes com a mesma doença são diferentes. O doente é que tem de ser tratado, e não a doença.
O mesmo ocorre no futebol e na vida. Cada jogo tem sua história, como diz o antigo e correto lugar-comum. Cada experiência vivida nunca é idêntica à outra.
Uma das características da neurose é a dificuldade de viver, de construir uma nova história. Repetir é muito mais fácil e mais seguro. Somos todos neuróticos. Uns mais, outros menos.
O sonho de muitos treinadores é fazer do futebol, cada vez mais, um esporte técnico, científico, neurótico, medido, calculado e programado em um computador. As surpresas, as observações subjetivas e o imponderável teriam a mínima importância. Tudo isso já acontece e é cada vez mais frequente.
Progressivamente, o futebol se torna um jogo programado, de passes curtos, para os lados, lineares e tecnicamente corretos. Os dribles surpreendentes e desconcertantes, de todos os tipos, estão desaparecendo, além dos passes de curva, de rosca e de trivela.
Os passes de curva não são apenas bonitos. São eficientes e essenciais. É a única maneira de fazer a bola contornar o corpo do adversário e chegar aos pés do companheiro, atrás do marcador.
Desde que os ingleses inventaram o futebol, ou melhor, organizaram o futebol como um jogo coletivo e com regras, discute-se sobre futebol arte e de resultados. Não consigo ver a arte separada da técnica e dos resultados. O que não se pode é confundir arte com firula, exibicionismo e habilidade. Todo artista é habilidoso, mas nem todo habilidoso é um artista.
Os grandes artistas, como Garrincha, Maradona, Ronaldinho e Messi, só se tornaram craques porque possuíam ótima técnica. Jogam bem e com eficiência. Já os que se destacam mais pela técnica, como Kaká, só se tornam craques porque são também habilidosos e criativos. Se Kaká fosse mais fantasista, seria ainda melhor.
O futebol precisa do básico e do extra, como disse o técnico Renê Simões. O básico são os fundamentos técnicos, a capacidade física, a dedicação, a concentração e tantas outras coisas que podem ser planejadas e ensaiadas. O extra é o enfeite, a improvisação, a fantasia, as finalizações, os dribles e os passes surpreendentes. O enfeite e o supérfluo são essenciais.
Os treinadores têm medo de jogar com vários jogadores habilidosos, criativos e imprevisíveis.
Antes da Copa do Mundo de 2006, Carlos Alberto Parreira disse que atuar com Ronaldinho, Kaká e Robinho, além de Ronaldo, seria o limite da ousadia. Ele não suportou essa pressão interna e se perdeu, além de trocar Robinho por Adriano.
No fundo de sua alma, Parreira queria treinar a seleção inglesa ou a italiana, nas quais as coisas seriam mais previsíveis.
A seleção brasileira de 1994, campeã do mundo, dirigida por Parreira, era uma seleção inglesa com o genial Romário na frente.


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