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VERDE E AMARELO
Reação ao caso de Desábato é sintoma de projeto novo para o Brasil, diz historiador
"Racismo se combate com polícia"
Divulgação
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Em Buenos Aires, Pelé cumprimenta Rattín, do Boca Juniors, na final da Libertadores de 1963, vencida pelo Santos por 2 a 1 |
RAFAEL CARIELLO
DA SUCURSAL DO RIO
Para o historiador Manolo Florentino, 47, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
a prisão do jogador argentino
Leandro Desábato, após ofender
o atacante Grafite, do São Paulo,
mostra que o combate mais eficiente ao racismo se faz "com polícia", e não "com transplantações
mecânicas de políticas afirmativas de outros países" -como a
implantação de cotas para negros
em universidades, por exemplo.
A reação "quase histérica" que
se seguiu à detenção do zagueiro é
sintoma, além da rivalidade entre
Brasil e Argentina, da implantação de um projeto novo de país
para o Brasil, em que branco é
branco e preto é preto, uma nação
"bicolor" em que se perde a "fortaleza" da mestiçagem.
Ofensas raciais são comuns entre jogadores brasileiros, ele diz, e
uma atitude como a do argentino
talvez passasse "em branco" há alguns anos. A maior afirmação da
identidade negra, diz Florentino,
é resultado de uma sociedade que
travou a possibilidade de ascensão social, na qual uma das saídas
passa a ser se identificar com um
grupo racial e tentar se beneficiar
de políticas como a de cotas.
Ademais, para o historiador, a
própria rivalidade entre Brasil e
Argentina pode ser marcada por
uma perspectiva racial. "Os argentinos sempre se sentiram os
europeus perdidos na América.
Racialmente eles se consideram
superiores a todo e qualquer latino-americano. Racismo é um traço cultural muito forte na Argentina. Se o outro país tiver população negra, é macaquito. Se tiver
população indígena, é índio."
Folha - O sr. acredita que a prisão
do jogador argentino foi correta?
Manolo Florentino - Há duas dimensões nesse caso. A primeira é
que é assim que se combate o racismo num país que tem uma lei
sobre o assunto: com polícia, e
não com qualquer outro tipo de
exacerbação de eventuais problemas raciais.
O caso específico reflete duas
coisas. Uma reação quase histérica dessa rivalidade imensa entre
Brasil e Argentina, especialmente
no campo do futebol. Mas também é uma reverberação da insistência em se fundar um Brasil bicolor, um Brasil preto e branco.
São dados muito concretos que,
eventualmente, há alguns anos
passariam em branco. Eles se xingam dentro do gramado, uns de
negro, outros de branquelo.
Folha - Esses xingamentos acontecem também entre jogadores
brasileiros?
Florentino - Não tenha dúvida.
Se você vai a um treino de qualquer clube brasileiro hoje, é "negão safado" para lá, "crioulo, eu
vou te matar na próxima", "volta
para a África". O curioso é essa
histeria agora. Mas, se há uma lei,
é com polícia que se combate racismo, e não com transplantações
mecânicas de políticas afirmativas de outros países.
Folha - O que aconteceu é melhor
do que criar esse Brasil bicolor com
política de cotas, por exemplo?
Florentino - Sim. É a maneira
mais eficiente que existe para se
combater racismo. Mas o que está
se agravando, nesse ambiente histérico, é uma coisa que já alertamos há muito tempo: cuidado,
porque, ao criar um Brasil bicolor, você vai acabar exacerbando
ódio onde não existe. O Brasil é
um país racista, mas o ódio racial
está sendo implementado com essa discussão meio enviesada realizada por diversos segmentos, inclusive pelo Estado brasileiro.
Essa coisa estranha que chamam de afro-brasileiro, coisa que
eu nunca vi. Nunca vi um afro-brasileiro. Eu conheço brasileiro.
Folha - Por que todo brasileiro é
também afro-brasileiro?
Florentino - É índio-brasileiro,
afro-brasileiro. Estamos colhendo os frutos concretos dessa histeria do Brasil bicolor.
Folha - Por que histeria?
Florentino - Ora, mas isso não
está sendo assumido como política pública? Essa busca pelo Ministério da Educação das raças brasileiras, por exemplo.
Folha - Mas tem origem social
também?
Florentino - Evidente. É a pobreza. Com o travamento das possibilidades de mobilidade social as
pessoas procuram se afirmar por
onde podem. Ou seja, a pesquisa
realizada pela Andifes [Associação Nacional dos Dirigentes das
Instituições Federais de Ensino
Superior] mostrou que a participação dos negros na universidade
corresponde a sua proporção na
população. Se fizer essa mesma
pesquisa daqui a alguns anos, os
negros na universidade serão
muito superiores a sua participação na população. É claro. Está
todo mundo se afirmando negro
em busca de uma melhor chance.
Folha - Faz diferença o xingamento ter sido feito por um argentino?
Florentino - Não há dúvida. Veja
o [correspondente do "New York
Times"] Larry Rohter. Ele não
chamou o Lula de bêbado? Não
virou histeria nacional. Envolveu
mais o governo e a própria mídia.
Não chegou a toda a população
como hoje, em todas as rádios,
em todos os jornais. Tem a ver
com a nossa rivalidade, beirando
um certo fascismo, porque você
pode ler isso como um racismo
ao contrário.
Folha - Contra os argentinos?
Florentino - Dos brasileiros com
os argentinos. Em 1996, na final
Argentina e Nigéria, na Olimpíada, houve um brasileiro que comemorou a vitória por 3 a 2 da
Nigéria nas ruas de Buenos Aires,
e ele foi assassinado. Aliás, ele era
negro, mestiço.
Folha - Essa rivalidade é marcada
de maneira racial também? Muitos
argentinos nos enxergam como todos negros?
Florentino - Não tenha dúvida.
Historicamente os argentinos
sempre se sentiram os europeus
perdidos na América. Racialmente eles se consideram superiores a
todo e qualquer latino-americano. Racismo é um traço cultural
muito forte na Argentina. Se o outro país tiver população negra, é
macaquito. Se tiver população indígena, é índio. Tanto é assim que
eles acabaram com o problema
indígena da maneira mais eficiente possível -eles mataram todos
os índios no século 19.
Folha - O que há de ruim na fundação de um país bicolor?
Florentino - Perdemos nossa
identidade, a mestiçagem, que é
nossa fortaleza. Não somos um
país multicultural. Já fomos. A
gente não vive problemas que são
próprios de países que só agora,
no século 21, estão se defrontando
com o multiculturalismo. Éramos
multiculturais no século 17, no 18.
Hoje somos simplesmente brasileiros. É uma vitória desse país e
dessa civilização. Corremos risco
com esse projeto maluco de criar
um país de pretos e brancos.
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