São Paulo, domingo, 17 de abril de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

VERDE E AMARELO

Reação ao caso de Desábato é sintoma de projeto novo para o Brasil, diz historiador

"Racismo se combate com polícia"

Divulgação
Em Buenos Aires, Pelé cumprimenta Rattín, do Boca Juniors, na final da Libertadores de 1963, vencida pelo Santos por 2 a 1


RAFAEL CARIELLO
DA SUCURSAL DO RIO

Para o historiador Manolo Florentino, 47, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a prisão do jogador argentino Leandro Desábato, após ofender o atacante Grafite, do São Paulo, mostra que o combate mais eficiente ao racismo se faz "com polícia", e não "com transplantações mecânicas de políticas afirmativas de outros países" -como a implantação de cotas para negros em universidades, por exemplo.
A reação "quase histérica" que se seguiu à detenção do zagueiro é sintoma, além da rivalidade entre Brasil e Argentina, da implantação de um projeto novo de país para o Brasil, em que branco é branco e preto é preto, uma nação "bicolor" em que se perde a "fortaleza" da mestiçagem.
Ofensas raciais são comuns entre jogadores brasileiros, ele diz, e uma atitude como a do argentino talvez passasse "em branco" há alguns anos. A maior afirmação da identidade negra, diz Florentino, é resultado de uma sociedade que travou a possibilidade de ascensão social, na qual uma das saídas passa a ser se identificar com um grupo racial e tentar se beneficiar de políticas como a de cotas.
Ademais, para o historiador, a própria rivalidade entre Brasil e Argentina pode ser marcada por uma perspectiva racial. "Os argentinos sempre se sentiram os europeus perdidos na América. Racialmente eles se consideram superiores a todo e qualquer latino-americano. Racismo é um traço cultural muito forte na Argentina. Se o outro país tiver população negra, é macaquito. Se tiver população indígena, é índio."

Folha - O sr. acredita que a prisão do jogador argentino foi correta?
Manolo Florentino -
Há duas dimensões nesse caso. A primeira é que é assim que se combate o racismo num país que tem uma lei sobre o assunto: com polícia, e não com qualquer outro tipo de exacerbação de eventuais problemas raciais.
O caso específico reflete duas coisas. Uma reação quase histérica dessa rivalidade imensa entre Brasil e Argentina, especialmente no campo do futebol. Mas também é uma reverberação da insistência em se fundar um Brasil bicolor, um Brasil preto e branco. São dados muito concretos que, eventualmente, há alguns anos passariam em branco. Eles se xingam dentro do gramado, uns de negro, outros de branquelo.

Folha - Esses xingamentos acontecem também entre jogadores brasileiros?
Florentino -
Não tenha dúvida. Se você vai a um treino de qualquer clube brasileiro hoje, é "negão safado" para lá, "crioulo, eu vou te matar na próxima", "volta para a África". O curioso é essa histeria agora. Mas, se há uma lei, é com polícia que se combate racismo, e não com transplantações mecânicas de políticas afirmativas de outros países.

Folha - O que aconteceu é melhor do que criar esse Brasil bicolor com política de cotas, por exemplo?
Florentino -
Sim. É a maneira mais eficiente que existe para se combater racismo. Mas o que está se agravando, nesse ambiente histérico, é uma coisa que já alertamos há muito tempo: cuidado, porque, ao criar um Brasil bicolor, você vai acabar exacerbando ódio onde não existe. O Brasil é um país racista, mas o ódio racial está sendo implementado com essa discussão meio enviesada realizada por diversos segmentos, inclusive pelo Estado brasileiro.
Essa coisa estranha que chamam de afro-brasileiro, coisa que eu nunca vi. Nunca vi um afro-brasileiro. Eu conheço brasileiro.

Folha - Por que todo brasileiro é também afro-brasileiro?
Florentino -
É índio-brasileiro, afro-brasileiro. Estamos colhendo os frutos concretos dessa histeria do Brasil bicolor.

Folha - Por que histeria?
Florentino -
Ora, mas isso não está sendo assumido como política pública? Essa busca pelo Ministério da Educação das raças brasileiras, por exemplo.

Folha - Mas tem origem social também?
Florentino -
Evidente. É a pobreza. Com o travamento das possibilidades de mobilidade social as pessoas procuram se afirmar por onde podem. Ou seja, a pesquisa realizada pela Andifes [Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior] mostrou que a participação dos negros na universidade corresponde a sua proporção na população. Se fizer essa mesma pesquisa daqui a alguns anos, os negros na universidade serão muito superiores a sua participação na população. É claro. Está todo mundo se afirmando negro em busca de uma melhor chance.

Folha - Faz diferença o xingamento ter sido feito por um argentino?
Florentino -
Não há dúvida. Veja o [correspondente do "New York Times"] Larry Rohter. Ele não chamou o Lula de bêbado? Não virou histeria nacional. Envolveu mais o governo e a própria mídia. Não chegou a toda a população como hoje, em todas as rádios, em todos os jornais. Tem a ver com a nossa rivalidade, beirando um certo fascismo, porque você pode ler isso como um racismo ao contrário.

Folha - Contra os argentinos?
Florentino -
Dos brasileiros com os argentinos. Em 1996, na final Argentina e Nigéria, na Olimpíada, houve um brasileiro que comemorou a vitória por 3 a 2 da Nigéria nas ruas de Buenos Aires, e ele foi assassinado. Aliás, ele era negro, mestiço.

Folha - Essa rivalidade é marcada de maneira racial também? Muitos argentinos nos enxergam como todos negros?
Florentino -
Não tenha dúvida. Historicamente os argentinos sempre se sentiram os europeus perdidos na América. Racialmente eles se consideram superiores a todo e qualquer latino-americano. Racismo é um traço cultural muito forte na Argentina. Se o outro país tiver população negra, é macaquito. Se tiver população indígena, é índio. Tanto é assim que eles acabaram com o problema indígena da maneira mais eficiente possível -eles mataram todos os índios no século 19.

Folha - O que há de ruim na fundação de um país bicolor?
Florentino -
Perdemos nossa identidade, a mestiçagem, que é nossa fortaleza. Não somos um país multicultural. Já fomos. A gente não vive problemas que são próprios de países que só agora, no século 21, estão se defrontando com o multiculturalismo. Éramos multiculturais no século 17, no 18. Hoje somos simplesmente brasileiros. É uma vitória desse país e dessa civilização. Corremos risco com esse projeto maluco de criar um país de pretos e brancos.

Texto Anterior: Corregedoria viu ação perfeita
Próximo Texto: Futebol: FPF espera 2006 para agir contra racismo
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.