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AZUL E BRANCO
Caso deve criar consciência, e não alimentar xenofobias,
diz sociólogo da Argentina
"Educar é mais importante que punir"
SILVANA ARANTES
DE BUENOS AIRES
O sociólogo Enrique Oteiza, 76,
se define como "ombudsman"
para questões de discriminação
na Argentina. Ele preside o Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo
(Inadi), órgão do governo federal,
criado em 1997.
Compete ao Inadi receber denúncias de discriminação em todo o país e instituir políticas de
prevenção no tema.
De Buenos Aires, Oteiza acompanhou o caso da detenção no
Brasil do jogador de futebol argentino Leandro Desábato. O sociólogo acha que esta seria uma
oportunidade para "ajudar a criar
consciência sobre a discriminação como um fato indesejável".
Porém, avalia que pelo menos
parte da imprensa tem tratado a
questão de forma "irresponsável". "É fundamental que não se
transforme numa guerra do futebol um assunto de tanta seriedade", afirma.
Folha - Na sua opinião, cabe dúvida se a expressão "negro de merda" é racista ou não ?
Enrique Oteiza - Se efetivamente
ficar comprovado que alguém
disse a outra pessoa "negro de
merda", sendo esta pessoa um
afrodescendente, é um fato de discriminação, de acordo com a lei
argentina e com as convenções internacionais antidiscriminação.
Uma expressão destas, num contexto de agressão, é discriminação.
Folha - No entanto é corrente na
Argentina a interpretação de que
houve exagero do Brasil na reação
à agressão de Leandro Desábato a
Grafite. Por que este fato é considerado corriqueiro na Argentina?
Oteiza - Ainda há informação e
um grau de conscientização insuficientes em setores da sociedade
argentina sobre a discriminação
como um fenômeno social e um
fato jurídico.
A Argentina tem uma lei contra
a discriminação e é signatária da
convenção das Nações Unidas
contra a discriminação. Contudo,
a legislação argentina contra a
discriminação é relativamente recente, de 1988.
Folha - A lei argentina prevê prisão para atos de discriminação?
Oteiza - A nossa lei estabelece
uma pena mais baixa do que a
brasileira. É uma pena acessória a
outro delito penal. Por exemplo,
se há uma agressão física, algo que
figure no código penal, e também
discriminação, então a discriminação é um agravante.
Não há pena para discriminação como um fato isolado. A discriminação apenas aumenta a pena, se associada a outros delitos.
Mas, na Argentina, condenações
a até três anos de prisão são liberadas de cumprimento em cárcere, a não ser que a pessoa tenha
antecedentes penais. Ou seja, ninguém vai à prisão na Argentina
por uma pena menor de três anos.
Folha - Na prática, então, ninguém é preso por discriminação na
Argentina?
Oteiza - Não. Houve propostas
no Congresso para aumentar a
pena por discriminação, mas destacados especialistas em direito
penal do país são contrários ao
aumento de penas em geral.
Folha - Por que no caso da discriminação?
Oteiza - A idéia é que é mais importante a prevenção, por meio
da educação, do que o aumento
das penas. O que se deve intensificar é a cultura e a educação, inclusive no meio futebolístico; aumentar a cultura antidiscriminatória.
Folha - A acusação de discriminação a Desábato, que envolve também a rivalidade entre Brasil e Argentina no futebol, contribui ou
desfavorece o aumento da conscientização que o sr. menciona?
Oteiza - Como o futebol é um espetáculo massivo, que atrai muitas paixões, quando há competições entre países, lamentavelmente, incorporam-se dimensões
nacionalistas, chauvinistas, xenófobas. Um tratamento irresponsável por parte da mídia pode
contribuir para exacerbar tensões
que não condizem com um fato
desta natureza. Este episódio está
nas mãos da Justiça, que é quem
tem a atribuição de resolvê-lo.
Folha - O sr. acha que está havendo tratamento irresponsável do fato pela mídia?
Oteiza - Por parte de muitos,
sim. Dei mais de 30 entrevistas sobre este caso. Em algumas, encontrei um grau de emotividade, de
irracionalidade e de manipulação
que me parece inadequado.
Folha - Quando o sr. diz irresponsabilidade da mídia, a que exatamente se refere?
Oteiza - Irresponsabilidade seria, no caso da imprensa argentina, pensar que, se efetivamente o
delito for comprovado, isso não
tem importância, porque é coisa
de futebol, algo menor. Ou seja,
tentar fazer parecer que não se infringiu uma lei. Outra forma seria
[questionar] um abuso de poder
no Brasil, que não é adequado privar da liberdade o jogador. Iniciar
um processo seria suficiente, mas
levá-lo algemado e deixá-lo incomunicável são procedimentos
inexplicáveis, abusivos.
Folha - O sr. avalia que esses procedimentos foram corretos?
Oteiza - A única coisa que digo é
que, se está provado que foi infringida a legislação contra a discriminação do Brasil e se essa pessoa tem um advogado defensor, a
não ser que haja alguma irregularidade... Mas confiamos na Justiça
brasileira, como acho que o Brasil
confia na da Argentina.
É preciso esperar o resultado da
Justiça. Talvez o juiz decida que
não houve discriminação ou decide que houve e resolva aplicar devidamente a lei. O mais necessário
agora é ter senso de justiça, da lei,
ser ponderado, ter consciência, e
não alimentar xenofobias e tensões. No futebol, quando equipes
de países diferentes disputam, às
vezes [o jogo] parece um simulacro do triunfo de um país sobre o
outro.
Folha - Que tipo de discriminação
é mais comum na Argentina?
Oteiza - O percentual maior é de
casos relacionados a imigrantes
dos países vizinhos. Em geral, são
trabalhadores, gente humilde.
As denúncias têm um conteúdo
misto, de difícil diferenciação entre xenofobismo e discriminação
de raça, já que, em poucas palavras, digamos que as populações
vizinhas não têm traços europeus.
Também há os casos de discriminação contra a mulher, contra as
pessoas portadoras de deficiência.
Folha - É baixo o índice de discriminação contra os negros na Argentina?
Oteiza - Não. Ao contrário, é alto. Ocorre que a população argentina afrodescendente, em razão
da mestiçagem, não apresenta
traços negros. É muito pequena a
proporção negra da população.
Mas, em relação a essa população,
o índice de discriminação é alto.
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