São Paulo, domingo, 17 de abril de 2005

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AZUL E BRANCO

Caso deve criar consciência, e não alimentar xenofobias, diz sociólogo da Argentina

"Educar é mais importante que punir"

SILVANA ARANTES
DE BUENOS AIRES

O sociólogo Enrique Oteiza, 76, se define como "ombudsman" para questões de discriminação na Argentina. Ele preside o Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo (Inadi), órgão do governo federal, criado em 1997.
Compete ao Inadi receber denúncias de discriminação em todo o país e instituir políticas de prevenção no tema.
De Buenos Aires, Oteiza acompanhou o caso da detenção no Brasil do jogador de futebol argentino Leandro Desábato. O sociólogo acha que esta seria uma oportunidade para "ajudar a criar consciência sobre a discriminação como um fato indesejável".
Porém, avalia que pelo menos parte da imprensa tem tratado a questão de forma "irresponsável". "É fundamental que não se transforme numa guerra do futebol um assunto de tanta seriedade", afirma.

Folha - Na sua opinião, cabe dúvida se a expressão "negro de merda" é racista ou não ?
Enrique Oteiza -
Se efetivamente ficar comprovado que alguém disse a outra pessoa "negro de merda", sendo esta pessoa um afrodescendente, é um fato de discriminação, de acordo com a lei argentina e com as convenções internacionais antidiscriminação. Uma expressão destas, num contexto de agressão, é discriminação.

Folha - No entanto é corrente na Argentina a interpretação de que houve exagero do Brasil na reação à agressão de Leandro Desábato a Grafite. Por que este fato é considerado corriqueiro na Argentina?
Oteiza -
Ainda há informação e um grau de conscientização insuficientes em setores da sociedade argentina sobre a discriminação como um fenômeno social e um fato jurídico.
A Argentina tem uma lei contra a discriminação e é signatária da convenção das Nações Unidas contra a discriminação. Contudo, a legislação argentina contra a discriminação é relativamente recente, de 1988.

Folha - A lei argentina prevê prisão para atos de discriminação?
Oteiza -
A nossa lei estabelece uma pena mais baixa do que a brasileira. É uma pena acessória a outro delito penal. Por exemplo, se há uma agressão física, algo que figure no código penal, e também discriminação, então a discriminação é um agravante.
Não há pena para discriminação como um fato isolado. A discriminação apenas aumenta a pena, se associada a outros delitos. Mas, na Argentina, condenações a até três anos de prisão são liberadas de cumprimento em cárcere, a não ser que a pessoa tenha antecedentes penais. Ou seja, ninguém vai à prisão na Argentina por uma pena menor de três anos.

Folha - Na prática, então, ninguém é preso por discriminação na Argentina?
Oteiza -
Não. Houve propostas no Congresso para aumentar a pena por discriminação, mas destacados especialistas em direito penal do país são contrários ao aumento de penas em geral.

Folha - Por que no caso da discriminação?
Oteiza -
A idéia é que é mais importante a prevenção, por meio da educação, do que o aumento das penas. O que se deve intensificar é a cultura e a educação, inclusive no meio futebolístico; aumentar a cultura antidiscriminatória.

Folha - A acusação de discriminação a Desábato, que envolve também a rivalidade entre Brasil e Argentina no futebol, contribui ou desfavorece o aumento da conscientização que o sr. menciona?
Oteiza -
Como o futebol é um espetáculo massivo, que atrai muitas paixões, quando há competições entre países, lamentavelmente, incorporam-se dimensões nacionalistas, chauvinistas, xenófobas. Um tratamento irresponsável por parte da mídia pode contribuir para exacerbar tensões que não condizem com um fato desta natureza. Este episódio está nas mãos da Justiça, que é quem tem a atribuição de resolvê-lo.

Folha - O sr. acha que está havendo tratamento irresponsável do fato pela mídia?
Oteiza -
Por parte de muitos, sim. Dei mais de 30 entrevistas sobre este caso. Em algumas, encontrei um grau de emotividade, de irracionalidade e de manipulação que me parece inadequado.

Folha - Quando o sr. diz irresponsabilidade da mídia, a que exatamente se refere?
Oteiza -
Irresponsabilidade seria, no caso da imprensa argentina, pensar que, se efetivamente o delito for comprovado, isso não tem importância, porque é coisa de futebol, algo menor. Ou seja, tentar fazer parecer que não se infringiu uma lei. Outra forma seria [questionar] um abuso de poder no Brasil, que não é adequado privar da liberdade o jogador. Iniciar um processo seria suficiente, mas levá-lo algemado e deixá-lo incomunicável são procedimentos inexplicáveis, abusivos.

Folha - O sr. avalia que esses procedimentos foram corretos?
Oteiza -
A única coisa que digo é que, se está provado que foi infringida a legislação contra a discriminação do Brasil e se essa pessoa tem um advogado defensor, a não ser que haja alguma irregularidade... Mas confiamos na Justiça brasileira, como acho que o Brasil confia na da Argentina.
É preciso esperar o resultado da Justiça. Talvez o juiz decida que não houve discriminação ou decide que houve e resolva aplicar devidamente a lei. O mais necessário agora é ter senso de justiça, da lei, ser ponderado, ter consciência, e não alimentar xenofobias e tensões. No futebol, quando equipes de países diferentes disputam, às vezes [o jogo] parece um simulacro do triunfo de um país sobre o outro.

Folha - Que tipo de discriminação é mais comum na Argentina?
Oteiza -
O percentual maior é de casos relacionados a imigrantes dos países vizinhos. Em geral, são trabalhadores, gente humilde.
As denúncias têm um conteúdo misto, de difícil diferenciação entre xenofobismo e discriminação de raça, já que, em poucas palavras, digamos que as populações vizinhas não têm traços europeus. Também há os casos de discriminação contra a mulher, contra as pessoas portadoras de deficiência.

Folha - É baixo o índice de discriminação contra os negros na Argentina?
Oteiza -
Não. Ao contrário, é alto. Ocorre que a população argentina afrodescendente, em razão da mestiçagem, não apresenta traços negros. É muito pequena a proporção negra da população. Mas, em relação a essa população, o índice de discriminação é alto.

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