|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Abertura ao vivo
Aqui a imprensa afirma que
a cerimônia de abertura foi
sensacional. Essa era também a
palavra do australiano sentado à
minha direita. Logo depois de exclamar "sensational!", dormiu.
O desfile das nações é inevitável.
Cada um espera que chegue o
momento de se emocionar com a
delegação de seu país. Sorte do
pessoal do Uzbequistão, que fica
animado até o fim. O Brasil passa
bem no início.
Deixemos de lado o vexame de
ter que escutar Juan Antonio Samaranch, presidente do COI. Ele
presidiu gestão corrupta, tem um
passado desagradável de cumplicidade franquista na Espanha e
se acha muito mais do que é. Deve
imaginar que foi mérito dele as
duas Coréias marcharem juntas.
Resta o espetáculo propriamente dito. Foi admirado por 1 bilhão
de telespectadores e por 110 mil
pessoas ao vivo. Foi o melhor até
hoje, dizem. Não sei. Mas me lembro que, assistindo na televisão às
aberturas de Barcelona e Atlanta,
pensei que gostaria de estar lá, ao
vivo. Imaginava que o espírito seria diferente e a visão mais interessante do que a seleção proposta pela edição televisiva.
Santa ingenuidade. De fato, o
espetáculo é produzido exclusivamente para a televisão. As equipes de câmera e som circulam livremente na pista estragando
qualquer coreografia. É claro que
os direitos de transmissão são
mais importantes do que os ingressos dos espectadores ao vivo.
Mas o pior não é isso.
O espetáculo, cujo tema era a
Austrália, propunha símbolos ao
mesmo tempo óbvios e incertos.
Pense no desfile de uma escola de
samba, quando você não conhece
o enredo e sua explicação: chega
um carro alegórico, você entende
alguma coisa, mas nada se organiza num sentido. No caso da escola de samba, a coisa não é programática: o CD dos enredos está
à venda desde dezembro, e os jornais já explicaram cada alegoria.
No caso da abertura de Sydney,
esta incerteza foi proposital. Assistimos a uma coreografia misteriosa, enquanto a solução dos
mistérios foi entregue aos comentaristas de TV. A gente, no estádio, tentava adivinhar: "Legal, os
cortadores de grama simbolizam
a vida suburbana. Será que é isso?". Ao contrário, o telespectador
escutava a voz do comentador
que, feito um deus da significação, desvendava os enigmas.
É esse um mecanismo constitutivo do poder da TV. Consiste em
produzir eventos que só façam
sentido em sua edição televisiva.
Com isso, aos poucos, a voz em off
do comentador se torna a mediação indispensável entre nós e
qualquer realidade. O que permite (perigosas) persuasões ocultas.
No caso, os comentaristas australianos convenceram a todos que o
espetáculo era "sensational!".
Email: ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Frase Próximo Texto: Luto: Morre, aos 69, mulher do presidente do COI Índice
|