São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2000

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CONTARDO CALLIGARIS

Abertura ao vivo

Aqui a imprensa afirma que a cerimônia de abertura foi sensacional. Essa era também a palavra do australiano sentado à minha direita. Logo depois de exclamar "sensational!", dormiu.
O desfile das nações é inevitável. Cada um espera que chegue o momento de se emocionar com a delegação de seu país. Sorte do pessoal do Uzbequistão, que fica animado até o fim. O Brasil passa bem no início.
Deixemos de lado o vexame de ter que escutar Juan Antonio Samaranch, presidente do COI. Ele presidiu gestão corrupta, tem um passado desagradável de cumplicidade franquista na Espanha e se acha muito mais do que é. Deve imaginar que foi mérito dele as duas Coréias marcharem juntas.
Resta o espetáculo propriamente dito. Foi admirado por 1 bilhão de telespectadores e por 110 mil pessoas ao vivo. Foi o melhor até hoje, dizem. Não sei. Mas me lembro que, assistindo na televisão às aberturas de Barcelona e Atlanta, pensei que gostaria de estar lá, ao vivo. Imaginava que o espírito seria diferente e a visão mais interessante do que a seleção proposta pela edição televisiva.
Santa ingenuidade. De fato, o espetáculo é produzido exclusivamente para a televisão. As equipes de câmera e som circulam livremente na pista estragando qualquer coreografia. É claro que os direitos de transmissão são mais importantes do que os ingressos dos espectadores ao vivo. Mas o pior não é isso.
O espetáculo, cujo tema era a Austrália, propunha símbolos ao mesmo tempo óbvios e incertos. Pense no desfile de uma escola de samba, quando você não conhece o enredo e sua explicação: chega um carro alegórico, você entende alguma coisa, mas nada se organiza num sentido. No caso da escola de samba, a coisa não é programática: o CD dos enredos está à venda desde dezembro, e os jornais já explicaram cada alegoria.
No caso da abertura de Sydney, esta incerteza foi proposital. Assistimos a uma coreografia misteriosa, enquanto a solução dos mistérios foi entregue aos comentaristas de TV. A gente, no estádio, tentava adivinhar: "Legal, os cortadores de grama simbolizam a vida suburbana. Será que é isso?". Ao contrário, o telespectador escutava a voz do comentador que, feito um deus da significação, desvendava os enigmas.
É esse um mecanismo constitutivo do poder da TV. Consiste em produzir eventos que só façam sentido em sua edição televisiva. Com isso, aos poucos, a voz em off do comentador se torna a mediação indispensável entre nós e qualquer realidade. O que permite (perigosas) persuasões ocultas. No caso, os comentaristas australianos convenceram a todos que o espetáculo era "sensational!".


Email: ccalligari@uol.com.br


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