São Paulo, domingo, 18 de maio de 2008

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TOSTÃO

Ciência, arte e acaso


Há pouca diferença entre o estilo europeu de jogada aérea e troca articulada de passe e o brasileiro, inventivo e de dribles

NESTA SEMANA , em uma caminhada pela cidade, na tentativa de fortalecer a corpo e embelezar a alma, um leitor me disse, em educada crítica, que tenho valorizado demais o acaso.
É verdade.
Mas isso não diminuiu a importância que dou à ciência, à técnica e à arte do futebol.
Talvez essa preocupação seja conseqüência também do tempo, de quem passou dos 60 anos. Ficamos mais vulneráveis às armadilhas do acaso.
Acaso não é destino. Nada está escrito. A desculpa do destino serve de consolo para enganar os relapsos e incompetentes e para fugir da culpa. Acaso não tem nada a ver também com o além nem com a vontade dos deuses do futebol.
Acaso não é o que não possa ser explicado hoje pela ciência e que será amanhã conhecido.
Esse desconhecimento serve de estímulo para a ciência aprofundar os estudos e para os racionais cientistas diminuírem a prepotência de que já sabem tudo.
Os iluministas achavam que a razão era o único caminho para atingir a sabedoria, que a natureza e todas as coisas tinham a mesma lógica da matemática e que, somente pela razão e conhecimento, os homens seriam melhores e mais felizes.
Não foi o que aconteceu.
Pelo contrário. Além disso, perceberam que grande parte da vida se passa nas entrelinhas, na subjetividade e no que não foi ou que não pode ser dito.
O acaso a que me refiro e valorizo é o que não tem nada de especial, mas que não foi planejado nem previsto e que pode mudar nossas vidas, a história de uma partida de futebol, de um país e até o destino da humanidade.
Com freqüência, não há sincronia entre o resultado e a história de um jogo de futebol. Dezenas de imprevistos, como uma bola desviada, mudam tudo.
Depois da partida, na nossa racionalidade e com bons argumentos, tentamos dar uma explicação convincente para os fatos.
"Tudo parece fácil e concatenado quando ganhamos; tudo parece disperso e difícil quando perdemos. No entanto, é por tão pouco que se ganha ou se perde. O apito final estabiliza violentamente aquilo que, no transcorrer do jogo, parece um rio catastrófico de mil possibilidades, a nos arrastar com ele." ("Aspectos Trágicos do Futebol" -Nuno Ramos)
Em 1971, o cineasta Pasolini escreveu que na Europa se jogava futebol de prosa e, no Brasil, futebol de poesia. Tempos atrás, Chico Buarque chamou os jogadores europeus de equilibrados e os brasileiros de equilibristas. Disse ainda que os europeus eram os donos do campo, pela disciplina tática e ocupação dos espaços, e os brasileiros eram donos do jogo, pela improvisação e intimidade com a bola. Geniais.
Hoje, está quase tudo igual.
Por causa da ciência do esporte e do mundo globalizado, o futebol evoluiu, para o bem e para o mal, e se transformou em um jogo excessivamente técnico (tecnicista), tático, veloz, físico e ensaiado.
O futebol e a vida continuam prazerosos e bonitos, porque, mesmo em situações previsíveis, comuns e repetitivas, haverá sempre o acaso e um artista, um craque, para transgredir e reinventar a história.


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