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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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FUTEBOL

Sonhos de um garoto

TOSTÃO
COLUNISTA DA FOLHA

João tinha 14 anos. Estudava em uma escola pública e, nos intervalos, jogava bola, num campo de terra, próximo da favela, onde morava. Era o craque da pelada. Nos domingos, o morro inteiro ia vê-lo jogar. A diversão era apostar de quanto seria a diferença de gols a favor da equipe de João e quantos gols ele faria.
Pedro e Maria eram os pais de João. Além de operários, eram os líderes da comunidade. Davam aulas de cidadania na rádio Favela e lutavam contra o narcotráfico e o crime organizado. Havia pressão de pessoas influentes para tirar a rádio do ar, com a alegação de que ela era clandestina. A reação popular não deixou. A rádio conquistara a população e acabou sendo reconhecida pelo governo como comunitária.
Naquela noite, João não dormiu bem. No dia seguinte, faria o sonhado teste nas categorias de base de um grande clube. Seu pai conseguira a chance por meio do vizinho, que era porteiro do clube e conhecido do treinador.
João acordou cedo, tomou um copo de leite, acompanhado de pão e manteiga, embrulhou a chuteira no papel de pão e foi com o pai, de ônibus, correr atrás do seu sonho.
João entrou em campo ao lado de dezenas de outros meninos. Eles foram divididos em oito times. Seriam quatro jogos com meia hora de duração para cada partida. O time de João participaria do último jogo.
João era meia-atacante, canhoto. Gostava de recuar até o meio-campo para receber a bola e sair driblando e tabelando até o gol. Começou o jogo, mas não lhe passavam a bola. Na única chance que teve, João driblou o zagueiro e foi derrubado. Não o deixaram bater a falta. Terminou o jogo.
Como se esperava, João não foi relacionado para o próximo teste. Ele e o pai desconfiaram que alguns meninos eram mais protegidos. Poderiam ser ligado a empresários. A peneira não passaria de uma farsa.
João chorou no caminho para casa. Foi o dia mais triste de sua vida. Logo, porém, o pai arrumou outro teste para o menino. Um amigo, que não perdia as peladas de domingo, conhecia bem o treinador de outro clube.
O garoto foi recebido de outra maneira. O técnico escutara maravilhas do menino. João iria treinar toda a partida, jogando durante os 90 minutos.
No início, ele estava nervoso. Aos poucos, porém, foi se libertando do medo de novo fracasso e passou a dar um show de bola. Após dar vários passes açucarados para os companheiros fazerem gols, resolveu decidir a partida. Recebeu a bola no meio-campo, driblou dois adversários e colocou-a por cima do goleiro. Houve um prolongado silêncio, seguido de aplausos na arquibancada.
O técnico não parava de sorrir. O garoto era melhor do que diziam. Pensou: um craque, mas não disse. Ele se enganara várias vezes sobre meninos que pareciam craques, mas não eram. Agora, seria diferente?
Em poucos meses, João já era titular do time sub-17. Em um ano, tornou-se o craque da equipe. Com 15 anos, foi convocado para a seleção brasileira da categoria, que disputaria o Mundial na França.
O morro inteiro foi até o aeroporto se despedir do garoto. Ele já era o ídolo da favela. O Brasil foi campeão, João ganhou o título de melhor jogador e um prêmio de US$ 5.000. As partidas foram mostradas pela televisão. Na volta, os amigos foram recebê-lo no aeroporto. A TV mostrou os gols e uma entrevista do garoto, agora revelação. Todos estavam surpresos com o fato do melhor jogador do mundo da categoria morar numa favela.
Os empresários, que já estavam havia muito tempo atrás do garoto, lutavam para convencer o pai de que o menino precisava de um intermediário.
A festa na casa de João durou até tarde da noite. Quando todos foram embora, João e seus pais se abraçaram, trocaram beijos e choraram. Naquele momento, o garoto teve a certeza de que mais importante que o título, os prêmios e o sucesso repentino eram o afeto, o orgulho e a segurança que sentia ao lado de seus queridos e dignos pais.
João estava feliz. Pela primeira vez, percebeu a diferença entre alegria e felicidade. A alegria era um sentimento comum, frequente e, às vezes, banal. A felicidade era algo especial, grandioso e que independia da vontade.
Dias depois, iria começar a Copa São Paulo de juniores e o time esperava por ele. Estava apenas começando a sua carreira. A vida continuava.
João se tornaria um craque?

E-mail tostao.folha@uol.com.br


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