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FUTEBOL
Torcer, retorcer, distorcer
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Quem gosta de futebol nunca
fica indiferente diante de
uma partida, mesmo que seja entre dois times pelos quais não se
tem nem simpatia nem antipatia
prévias.
Podemos mesmo dizer que existem dois jeitos diferentes de torcer. Um deles é o do torcedor propriamente dito, aquele que tem
uma afeição fiel a um determinado clube, de acordo com uma escolha cujas razões às vezes se perdem nas brumas da memória.
O torcedor típico vê todo o futebol a partir da perspectiva de seu
time ou, dizendo de outro modo,
através do filtro da paixão. Muitas vezes esse modo de ver está a
um passo da paranóia: todos os
árbitros são mal-intencionados,
os adversários são invariavelmente desleais, a sorte está sempre do outro lado.
Os verbos "torcer" e "distorcer"
são quase sinônimos. Desnecessário dizer que a mesma passionalidade tinge o modo como o torcedor vê os jogos de seus rivais. Um
corintiano "roxo" nunca verá
com distanciamento uma partida
do Palmeiras -e vice-versa.
Mas, como eu dizia lá atrás, há
outro modo de vibrar com o futebol, um modo que não tem a ver
com uma preferência duradoura
por um clube.
Não me refiro a uma contemplação desinteressada, de quem
assistisse a um jogo só por prazer
estético ou interesse técnico. Minha hipótese é a de que esse tipo
de apreciação neutra não existe.
É difícil ver alguns minutos de
um jogo qualquer -de uma pelada de praia a um confronto de
Copa do Mundo- sem acabar se
envolvendo emocionalmente, em
alguma medida, com aquilo.
O jogo de futebol tem a faculdade de tocar algum nervo, oculto
ou exposto, de quem o presencia.
A arrogância de um jogador pode
predispor um espectador contra
toda uma equipe. A simpatia de
outro pode fazer o oposto. Deixo
aos psicanalistas a explicação do
fenômeno e passo a descrever um
exemplo concreto, para ilustrar
melhor a questão.
Na quarta-feira, assisti pela TV
a Portugal 2 x 0 Rússia, pela Eurocopa. Eu tinha, de início, uma
franca simpatia pelos donos da
casa, até por ser neto de portugueses. Mas bastou o juiz expulsar injustamente o goleiro russo para
eu virar casaca e passar a me solidarizar com os humilhados e
ofendidos da terra de Dostoiévski.
Faltou pouco para eu dar vazão
aos estereótipos e preconceitos
contra os portugueses, sentimentos obscuros e condenáveis, daqueles que estão sempre à espreita, ameaçando romper a fina casca de civilização com que nos cobrimos. Mas eis que uma única
jogada da seleção rubro-verde
-a triangulação entre Deco, Nuno e Figo que acabou com uma
bola na trave- provocou outra
reviravolta e passei a desejar novos lances como aquele.
Quando não se trata do "nosso"
time, da "nossa" seleção, o afeto
do torcedor é fluido, volúvel, imprevisível e incontrolável, como
costuma ser o desejo. E um dos
desejos de quem ama o futebol é
ver brotar a jogada mais bonita
-como uma árvore, uma música
ou um vendaval.
Desastre tricolor
O São Paulo, mais uma vez,
morreu na praia. O desastre tricolor tem razões bem concretas. No jogo do Morumbi, o time não teve imaginação para
superar a retranca adversária e
nem competência para converter em gol as chances criadas.
Na partida de volta, quarta-feira, faltou esquema de jogo (o
meio-campo não existiu, obrigando a defesa à abominável
"ligação direta" à base de chutões) e faltou sobretudo manter
a concentração até o fim. O tricolor alternou estranhamente
afoiteza (nas conclusões) e apatia, fazendo cera como se quisesse ir aos pênaltis ou como se
pudesse vencer quando quisesse. O Once Caldas é uma equipe
"encardida", que vive da distração do adversário. Assim como
o Santos, o São Paulo relaxou e,
em vez de gozar, dançou.
E-mail jgcouto@uol.com.br
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