São Paulo, sábado, 19 de junho de 2004

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FUTEBOL

Torcer, retorcer, distorcer

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Quem gosta de futebol nunca fica indiferente diante de uma partida, mesmo que seja entre dois times pelos quais não se tem nem simpatia nem antipatia prévias.
Podemos mesmo dizer que existem dois jeitos diferentes de torcer. Um deles é o do torcedor propriamente dito, aquele que tem uma afeição fiel a um determinado clube, de acordo com uma escolha cujas razões às vezes se perdem nas brumas da memória.
O torcedor típico vê todo o futebol a partir da perspectiva de seu time ou, dizendo de outro modo, através do filtro da paixão. Muitas vezes esse modo de ver está a um passo da paranóia: todos os árbitros são mal-intencionados, os adversários são invariavelmente desleais, a sorte está sempre do outro lado.
Os verbos "torcer" e "distorcer" são quase sinônimos. Desnecessário dizer que a mesma passionalidade tinge o modo como o torcedor vê os jogos de seus rivais. Um corintiano "roxo" nunca verá com distanciamento uma partida do Palmeiras -e vice-versa.
Mas, como eu dizia lá atrás, há outro modo de vibrar com o futebol, um modo que não tem a ver com uma preferência duradoura por um clube.
Não me refiro a uma contemplação desinteressada, de quem assistisse a um jogo só por prazer estético ou interesse técnico. Minha hipótese é a de que esse tipo de apreciação neutra não existe.
É difícil ver alguns minutos de um jogo qualquer -de uma pelada de praia a um confronto de Copa do Mundo- sem acabar se envolvendo emocionalmente, em alguma medida, com aquilo.
O jogo de futebol tem a faculdade de tocar algum nervo, oculto ou exposto, de quem o presencia. A arrogância de um jogador pode predispor um espectador contra toda uma equipe. A simpatia de outro pode fazer o oposto. Deixo aos psicanalistas a explicação do fenômeno e passo a descrever um exemplo concreto, para ilustrar melhor a questão.
Na quarta-feira, assisti pela TV a Portugal 2 x 0 Rússia, pela Eurocopa. Eu tinha, de início, uma franca simpatia pelos donos da casa, até por ser neto de portugueses. Mas bastou o juiz expulsar injustamente o goleiro russo para eu virar casaca e passar a me solidarizar com os humilhados e ofendidos da terra de Dostoiévski.
Faltou pouco para eu dar vazão aos estereótipos e preconceitos contra os portugueses, sentimentos obscuros e condenáveis, daqueles que estão sempre à espreita, ameaçando romper a fina casca de civilização com que nos cobrimos. Mas eis que uma única jogada da seleção rubro-verde -a triangulação entre Deco, Nuno e Figo que acabou com uma bola na trave- provocou outra reviravolta e passei a desejar novos lances como aquele.
Quando não se trata do "nosso" time, da "nossa" seleção, o afeto do torcedor é fluido, volúvel, imprevisível e incontrolável, como costuma ser o desejo. E um dos desejos de quem ama o futebol é ver brotar a jogada mais bonita -como uma árvore, uma música ou um vendaval.

Desastre tricolor
O São Paulo, mais uma vez, morreu na praia. O desastre tricolor tem razões bem concretas. No jogo do Morumbi, o time não teve imaginação para superar a retranca adversária e nem competência para converter em gol as chances criadas. Na partida de volta, quarta-feira, faltou esquema de jogo (o meio-campo não existiu, obrigando a defesa à abominável "ligação direta" à base de chutões) e faltou sobretudo manter a concentração até o fim. O tricolor alternou estranhamente afoiteza (nas conclusões) e apatia, fazendo cera como se quisesse ir aos pênaltis ou como se pudesse vencer quando quisesse. O Once Caldas é uma equipe "encardida", que vive da distração do adversário. Assim como o Santos, o São Paulo relaxou e, em vez de gozar, dançou.

E-mail jgcouto@uol.com.br


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