São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

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"Isso é vida?"

ALBERTO HELENA JR.
da Equipe de Articulistas
"Isso é vida?" A pergunta de Ronaldinho aos repórteres da TV ficou ecoando na minha cabeça, mesmo depois de o craque engrenar seu carro e partir da tela. A pergunta ia e vinha, em duas vias. Tanto podia ser um lamento do menino célebre e rico, pela vida que escolheu, sob os holofotes, o que lhe dá fama e consequentemente fortuna, mas rouba-lhe a intimidade, como lastimar a árida e aviltante profissão de catador de notícias dos seus perseguidores.
Aliás, era a pergunta que eu me fazia todos os dias em Ozoir, ao assistir a repetição da mesma e humilhante cena -aquela multidão de repórteres se espremendo nas cerca do campo de treino da seleção, à espera de algumas migalhas de declarações dos jogadores e dos integrantes da comissão técnica: "Isso é vida?"
A bem da verdade, essa questão me persegue há mais de 40 anos, quando comecei a frequentar, ainda adolescente, as primeiras redações. Isso é vida? -esse ofício de abrir orifícios na realidade, para espiar o que se esconde por trás das aparências? Tenho elaborado, claro, várias respostas. Algumas edificantes, do tipo: é, mas se não fôssemos nós, quem daria à luz as maracutaias e as mazelas dos poderosos e famosos, quem sustentaria os direitos dos mais fracos? Outras, porém, que já me levaram a fundas depressões.
Ainda outra noite, assistia na TV a um velho filme que, se me permite o Inácio Araújo, reputo como um dos mais bem acabados produtos de Hollywood: "Herdeiros do Vento", de Stanley Kramer, com um trio de ouro nas interpretações de dois advogados e um jornalista -Spencer Tracy, Fredrich March e Gene Kelly.
A história se baseia num fato real: o julgamento, na virada dos anos 20 para os 30, de um professor de ginásio numa cidade reacionária do interior dos EUA que cometera o crime, previsto em lei, de ensinar aos seus alunos a lei de Darwin sobre a evolução das espécies. Acusando-o, um promotor público famoso, fanático fundamentalista da Bíblia; defendendo-o, um não menos famoso advogado, agnóstico e progressista. Entre ambos, antigos camaradas agora históricos desafetos, um cínico repórter da cidade grande.
Resumindo: no transcorrer da trama, o que era o Bem virou o Mal e vice-versa. E o drama, levado num tom leve de comédia, transforma-se em tragédia. O tempo todo perpassa pelo filme uma tensão que explode aqui e ali em emoções desenfreadas -é pai que amaldiçoa filha, é o povo querendo linchar o advogado, é, enfim, a vida concentrada, com todos os seus ingredientes, em duas horas de representação, do Gênesis ao microfone de rádio, o milagre da época.
No fim, as coisas se ajustam, todos se ajustam -no filme, como na história real. Menos o repórter cínico, que segue sendo um desajustado, um dado que não se encaixa em toda aquela representação. E por quê? Simplesmente, porque aquela história, que começou com o Gênesis não terminou no microfone de rádio. E, a cada pergunta do repórter, uma nova questão se levanta e uma nova pergunta há de ser feita, empurrando o fim da história sabe Deus para onde.
Porque isso é a vida.


Alberto Helena Jr. escreve aos domingos, segundas e quartas



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