São Paulo, domingo, 20 de junho de 2010

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JOSÉ GERALDO COUTO

Dois taxistas na África


Afirmação negra convive com nostalgia do apartheid nas ruas de Johannesburgo

PEÇO LICENÇA para não falar de futebol hoje.
Tenho rodado um bocado por Johannesburgo e arredores e, como não dirijo na mão inglesa e o transporte público aqui praticamente inexiste, fiz amizade com os dois taxistas aos quais recorro com mais frequência.
Um deles é negro, o zulu Patrick. O outro, o egípcio Dino, é branco, ou quase.
Patrick me contou outro dia a sua história familiar. Em 1976, quando ele tinha cinco anos, a polícia invadiu o barraco da família, em Soweto, à procura de sua irmã mais velha, que era militante do Congresso Nacional Africano, o então clandestino partido de Mandela.
Os policiais ameaçaram os moradores e deram tiros para o chão. Um deles atingiu o pé da mãe de Patrick.
A irmã de Patrick vivia na clandestinidade e acabou saindo do país logo depois. Viveu em Moçambique e Zâmbia, onde se casou e teve três filhos.
A família só voltou a ter notícias dela 14 anos depois, quando Mandela foi libertado e o apartheid chegou ao fim. Até então, acreditava-se que ela estivesse morta.
Durante sua ausência, a polícia fez visitas periódicas à casa dos pais de Patrick, intimidando, ameaçando e, não raro, agredindo. Patrick cresceu sob o medo dos brancos, sobretudo dos que usavam um uniforme.
Corta para o taxista Dino, que morou alguns anos no Brasil, em Taubaté (SP), e arranha umas palavras em português. Para ele, o problema da África do Sul "são os pretos".
Ele se queixa especialmente das políticas de reparação pós-apartheid, que concederam mais facilidade aos negros para obter empregos, moradias, cargos públicos etc.
Para Dino, os negros estão ocupando postos para os quais não estão preparados, e o resultado disso é o caos nos serviços, o atraso no desenvolvimento do país. Segundo ele, na Cidade do Cabo as coisas funcionam porque "o governo lá é branco".
Não são poucos os nostálgicos do apartheid, como Dino, soltos pelo país.
Há quem tema pelo que vai acontecer na África do Sul depois da morte de Nelson Mandela.
Patrick não teme. "Vai seguir tudo em paz", diz, com o sorriso de quem saboreia cada minuto da liberdade conquistada.

jgcouto@uol.com.br


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