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São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 2003

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A primeira vez, Schumacher

Quinta-feira, 5.out.2000
A partir do momento em que pisei no Japão, todos me perguntavam a mesma coisa. "Está nervoso?" E o pior de tudo é que... Eu estava começando a ficar. Dentro de mim, conseguia abstrair qualquer pensamento sobre a disputa do título. Mas o problema é que essas questões sempre traziam o assunto à tona, e isso estava começando a me enervar.
Nós sabíamos que aquele poderia ser o momento decisivo, e eu me lembro bem daquele final de semana, quando realizei o sonho de um título mundial com a Ferrari. Foi sem dúvida especial, toda a temporada foi direcionada para que ele chegasse, apesar de a equipe estar agindo como se fosse um GP comum. Acredito que essa é a maneira certa de agir.
Após a prova de Indianápolis, voltei imediatamente para Mugello para dois dias de testes. Foi cansativo, não só por causa do fuso horário, mas porque eu queria acertar tudo o que fosse necessário. Estava absolutamente determinado a ser campeão mundial.
Os testes correram bem. A gente inclusive estabeleceu um novo recorde em Mugello, e isso me deu um sentimento de segurança. Naturalmente que sabia que nossas chances eram boas: uma vantagem de oito pontos não é nada desprezível. Mas, no entanto, teria sido o maior erro da história assumir que já éramos campeões.
Estava claro, após o que aconteceu com o Mika em Indianápolis [o motor do finlandês estourou], que as coisas podem mudar rápido na F-1. Você nunca está certo de nada. Poderia estar nas cartas que eu deixaria o Japão dois pontos atrás dele [haveria ainda o GP da Malásia]. Essa é a maneira com a qual eu tenho que encarar os problemas. É assim que sou: antes de tudo, um pessimista.

Sexta-feira, 6.out.2000
Eu dormi tão mal... Uma ou duas horas no máximo. Qualquer um diria que era por causa da disputa do campeonato, mas eu acho que não. Não era aquele sentimento de quem está com a cabeça cheia de pensamentos e simplesmente não consegue desligar.
Acho que tinha mais a ver com o fuso horário. De vez em quando, tenho fases em que sofro para lidar com isso. E, quando muita coisa fica acumulada -como a viagem de volta de Indianápolis, os testes na Itália e os eventos da Ferrari-, você perde o equilíbrio e dorme mal. Mas eu sabia que logo tudo voltaria ao normal.
No dia anterior, todos estavam falando sobre o terremoto em Suzuka, o que era legal para mim. Pelo menos as pessoas discutiam outro assunto e não ficavam fazendo mais a mesma pergunta: "Está nervoso?". Eu não tinha muito a comentar sobre o terremoto porque não o senti de dentro do carro. Corinna [mulher do alemão] estava andando ao lado da pista durante o segundo treino livre e também disse não ter percebido nada, mas deve ter sido bem violento no paddock.
Desde o início, o carro estava bem. Os dados tão promissores dos testes da semana anterior estavam se confirmando. Em Mugello, nós havíamos sido muito rápido com os novos pneus e isso estava se repetindo em Suzuka. Mas, honestamente, não acreditava na vantagem de seis décimos de segundo sobre a McLaren.
Tudo corria bem. A equipe estava incrivelmente concentrada. Era um prazer ver todos tão focados. As reuniões duravam mais do que o normal, porque queriam ter certeza de que não haveria erros no sábado e no domingo.
O clima era tão denso que parecia possível pegá-lo com a mão. Não havia motivo para voltar ao hotel. Corinna e eu ficamos na pista e jantamos com toda a equipe. Só saímos de lá tarde da noite.

Sábado, 7.out.2000
Outra noite sem dormir. Mas eu estava tão concentrado que nem notei a falta de um bom sono. Obter a pole position foi um primeiro passo, apesar de ter sido por pouco: só nove milésimos de segundo me separaram do Mika. Mas o treino foi bem gostoso porque Mika e eu estávamos nos pressionando um ao outro, acelerando cada vez mais.
Naquela tarde, depois da entrevista coletiva, começaram a circular uns rumores interessantes, principalmente entre a imprensa, mas que também foram discutidos dentro da equipe. Ron Dennis [chefe da rival McLaren] teria reclamado do fato de a FIA haver escalado um comissário italiano para a corrida. Ele estaria questionando sua neutralidade. Também teria sugerido, em conversas com jornalistas, que nós estávamos usando controle de tração. Isso poderia significar que eles estavam preparando um protesto.
Ele também parecia estar contrariado com a recomendação que a FIA deu a todos os outros pilotos para não interferirem na disputa pelo título. O piloto que o fizesse poderia ser punido. Mas nem Mika nem eu estávamos contando com a ajuda de outros pilotos, especialmente de nossos companheiros. Estava bem claro para mim que o certo a fazer era tentar voar no início da prova e então fazer minha própria corrida, com a liderança na mão.
Mas os rumores tomaram conta do paddock como se fossem labaredas. Não me preocupei. Só não queria me distrair, e notei que todos estavam a cada momento mais concentrados. Nós queríamos esse campeonato. Eu queria, finalmente, esse título.
Mais uma vez, nossas reuniões foram tão densas e longas que Corinna e eu decidimos ficar na pista e jantar com os mecânicos e engenheiros. Já era tarde para ir a algum restaurante. E, no caso, eu não queria mesmo estar em nenhum outro lugar do mundo. Queria mesmo era estar ali, com a equipe. Gosto de fazer isso nos sábados, antes das corridas.
Pela frente, uma bela noite a ser dormida. As três noites anteriores em Suzuka haviam sido as mais destruidoras da minha vida. Fisicamente me sentia arrebentado, mas sempre que eu entrava na pista esquecia isso e não sentia absolutamente nada de errado.

Domingo, 8.out.2000
Por toda a minha vida, nunca esquecerei o Ross Brawn pelo rádio. Estava saindo dos boxes, após meu segundo pit stop, desesperado para saber se ficaria à frente do Mika. Então, o Ross disse pelo rádio: "Acho que vai dar certo". Estava tenso, esperando que ele fosse dizer: "Não funcionou". Honestamente, meu coração dava piruetas no ar. Era como se ele tivesse ficado um tempo sem bater.
Eu não esperava que aquilo fosse funcionar, após meu segundo pit. Minhas duas voltas antes de entrar nos boxes não foram boas. Peguei tráfego e ainda tive que desviar de um Benetton que rodou e saiu da pista. Perdi tempo e nunca imaginei que ainda estaria na liderança depois do pit. Então veio aquela mensagem do Ross, pelo rádio. Inacreditável! E, assim que saí dos boxes, percebi que estava mesmo em primeiro e que, se não cometesse erros e se não houvesse problemas com o carro, o título estava nas nossas mãos -ultrapassar é quase impossível em Suzuka. A vitória e o título!
Mas, antes de tudo, eu tinha que manter a concentração. Estava garoando, e o asfalto começava a ficar úmido. O problema é que o asfalto havia sido recapeado para aquele ano e, às vezes, não dava para ver onde é que estava molhado. Por isso fui tão lento naquelas duas últimas voltas, para me certificar de que nada de errado aconteceria. E, então, cruzei a linha de chegada. Louco! Até então, eu não havia sentido nada. Queria ter a certeza de tudo, e ver aquela linha, enfim, atrás de mim. O que aconteceu, então, é indescritível.
No resto daquele dia, as pessoas me perguntavam como eu me sentia e em nenhum momento achei as palavras certas. Sinceramente, é o tipo de coisa que não dá para descrever com palavras.
Eu estava maravilhosamente feliz. Não sabia o que fazer com tanta felicidade. De repente me vi montado no carro, sobre meus companheiros de Ferrari, como se eu fosse explodir. Dei um murro tão forte no volante que depois tiveram que levá-lo para uma revisão! Após anos de decepção, finalmente havia conseguido!
Na volta de desaceleração, quando tudo já havia terminado, as lágrimas começam a cair e era como se eu estivesse fora do meu corpo, olhando para mim mesmo, para aquela cena. Quase como se eu fosse uma outra pessoa.
Quando saí do carro, a equipe toda estava esperando. Foi fantástico. Aqueles rostos! Olhos brilhando e todos em êxtase -poderia ter jogado meus braços para abraçar todos e beijar todos. Tentei fazer isso e, obrigado Deus, Corinna estava lá. E então, o pódio... Eu poderia abraçar o mundo todo dali. Quando olhava para baixo e via aqueles sorrisos... Como já disse, é impossível encontrar as palavras para momentos assim.
Todos os anos, todos celebram o final de ano em Suzuka. E este ano foi muito especial para a Ferrari. Mas, de vez em quando, no meio da festa, eu desligava. Começavam a vir flashes da corrida na minha cabeça, e eu tinha que parar e dar um tempo...
Fomos para um karaokê. Eu deixei que, antes de mim, todos subissem ao palco para cantar e dançar. Mas, em termos de consumo alcoólico, ninguém me vencia. Bebi além da conta e, quando saímos de lá, às 5h, fiquei feliz ao ver que a Corinna estava comigo. Nunca tive uma ressaca tão forte como nos dias seguintes. Do Japão, fomos para a Tailândia, e eu levei uns dois dias para me recuperar daquela festa.
Olhando para trás, tenho que dizer que aquela corrida foi algo especial para mim. Não apenas porque me deu o título, mas também porque foi uma corrida de altíssimo nível, de primeira classe. A temporada toda foi espetacular. Realmente foi uma corrida incrivelmente satisfatória e divertida.
Por mais de 40 voltas, Mika e eu cravamos tempos quase idênticos, como se fosse uma eterna volta lançada. Foi certamente uma das melhores corridas que já fiz, se não a melhor. Mika estava fantástico e me empurrou para o limite. Vencer uma prova como aquela é algo muito especial.


Tradução de Fábio Seixas


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