São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Bonequinhos de vidro

Explode a quantidade de casos de danos físicos e psicológicos a crianças, e comitê olímpico prepara medidas contra especialização precoce no esporte

Fernando Moraes/Folha Imagem
O corredor Silvio Ribeiro treina crianças no Embu


GUILHERME ROSEGUINI
MARIANA LAJOLO


DA REPORTAGEM LOCAL

Uma lesão de nome complicado, que costuma abalar atletas de alto nível, obrigou Julia Spina a se afastar do tênis por quase um ano.
Após peregrinar por clínicas de fisioterapia em busca de algo que abrandasse a dor, acabou no consultório médico. Descobriu uma ruptura parcial do manguito rotador (tendão do ombro), mesmo problema que quase tirou o capitão Nalbert, 31, da seleção de vôlei campeã dos Jogos de Atenas.
A diferença entre os casos está na carteira de identidade. Julia nasceu em 02/10/1992. O trauma ocorreu quando ela tinha 11 anos.
O caso pode soar pitoresco, mas não é exceção. Pior: virou tendência, capaz de tirar o sono de cartolas do Comitê Olímpico Internacional. Em 2005, problemas relacionados a crianças lideraram a lista de reclamações recebidas pela comissão médica da entidade, que não divulgou o número de ocorrências registradas.
Em dezembro, o COI decidiu agir e, pela primeira vez, divulgou declaração na qual alerta para os danos físicos e psicológicos que podem brotar com o acesso precoce ao esporte competitivo.
De acordo com o médico americano Lyle Micheli, diretor da divisão de medicina do esporte da Universidade Harvard e um dos autores do texto, trata-se apenas do primeiro ato de uma série.
"Precisamos de mais pesquisas para tomar qualquer medida restritiva. Não posso dizer com qual idade a criança pode treinar isso ou aquilo. Mas, como recebemos muitas reclamações, creio que está na hora de criarmos diretrizes para evitar abusos", diz à Folha.
A Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) já produziu documento no qual alerta técnicos para, na hora de trabalhar com esportistas mirins, colocar saúde e bem-estar como prioridade.
Mas isso nem sempre é seguido.
Márcia Pilla do Valle, psicóloga do Grêmio Náutico União, um dos clubes que mais investem no nascedouro de atletas, coleciona casos cujas trajetórias sofreram baque. Os danos, diz, podem vir de ações aparentemente banais. "O problema não está no esporte e sim no que se faz com ele."
Um nadador de cerca de 11 anos, por exemplo, brilhava nos torneios até receber diploma da confederação brasileira, que o parabenizava e dizia que estava pré-convocado para futuras Olimpíadas. De repente, começou a vomitar antes das provas. A iniciativa de incentivo gerou prejuízo.
Embora ainda não existam estudos conclusivos sobre os prejuízos do início precoce no esporte, algumas observações apontam para um cenário preocupante.
Segundo médicos brasileiros, por exemplo, o número de lesões graves em crianças cresceu cerca de 20% nos últimos três anos.
Sinal dos tempos, a Federação Internacional de Ginástica alterou de 15 para 16 anos a idade mínima para um atleta ir a Mundiais e Olimpíadas a partir de 2009.
A especialização precoce também pode expor crianças e adolescentes a conflitos psicológicos.
"Uma garota da natação, por exemplo, tem o corpo mais forte, ombros largos, diferente do "padrão". Para os colegas de esporte é linda, mas para os outros pode ser estranha. É preciso ajudá-la a valorizar sua forma", diz Márcia.
Se o acesso prematuro à elite aponta para mais problemas, casos que seguem o contrário colecionam bons frutos.
Fato curioso ocorreu no vôlei. Talmo, levantador campeão em Barcelona-1992, investigou para um trabalho acadêmico o início da carreira de seus colegas.
"A conclusão foi que nenhum deles treinou vôlei antes dos 12 anos. Alguns foram iniciados cedo, mas foi de forma amena e lúdica. Todos brincaram na rua, subiram em árvore, fizeram atividades diversas antes do vôlei."


Texto Anterior: Painel FC
Próximo Texto: Especialistas pregam diversão
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.