São Paulo, sábado, 22 de abril de 2006

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FUTEBOL

Uma chance para o politeísmo

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

O brasileiro, já dizia Glauber Rocha, tem um certo pendor para a monarquia. Temos o rei do futebol, a rainha da uva, o rei da voz, e por aí vai. Até rei da corrupção, se bobear, a gente elege, ou melhor, unge.
Vem daí essa discussão toda sobre Ronaldinho x Pelé. Para uns, o jogador gaúcho já estaria disputando o trono com o -passe a palavra- Rei. A julgar pelas declarações de Pelé fora de campo e pelas atuações de Ronaldinho dentro dele, nenhum dos dois está muito preocupado com isso.
Pelé admitiu tranqüilamente que Ronaldinho faz coisas que ele não sabia fazer. O craque do Barcelona, por sua vez, continua jogando como se estivesse se divertindo na praia ou no quintal de sua casa. São homens serenos, em paz com a glória, seguros de seu caráter de semideuses.
Já que falamos em deuses, o problema talvez seja anterior ao apego à monarquia. Talvez tenha a ver com o monoteísmo. Por que não imaginarmos, como os povos pagãos, um Olimpo com uma porção de deuses, cada qual com seus atributos e sua luz própria?
No nosso Olimpo (ou pelo menos no meu), além de Pelé e Ronaldinho, haveria lugar para Garrincha, Rivellino, Zico, Romário, Cruyff, Maradona, Platini e muitos outros.
Nessa mudança de paradigma da divindade haveria uma vantagem adicional. O Deus do monoteísmo se escreve com maiúscula, é absoluto, infalível e intocável. Em Sua defesa, os fiéis são capazes de matar e morrer.
Já o politeísmo admite a falibilidade dos deuses, cada um com suas manias e fraquezas. Eles estão mais próximos dos mortais e não ensejam nenhuma carnificina purificadora. Podemos até rir deles, sem deixar de amá-los.
Pense bem: de quanto desconforto você seria poupado se não precisasse quebrar a cabeça para conciliar o futebol luminoso de Pelé com as patacoadas que ele diz e faz na sua identidade de Edson.
Pense nas torturantes contradições de Romário, de Ronaldo, de Edmundo. Poderíamos adorá-los sem culpa, como um cidadão grego adorava Zeus mesmo sabendo que ele era um mulherengo sem escrúpulos, a ponto de se metamorfosear em cisne para comer a mulher do próximo. E olhe que ele era o manda-chuva entre os deuses do Olimpo.
Meu amigo Luiz Maria Veiga, citando um autor cujo nome não lembro, disse que Deus existe, quer tenha criado o homem, quer tenha sido criado por este.
O imaginário tem tanta força quanto o real. Aliás: faz parte do real. Se imaginamos um deus sem mácula, tirânico e exigente, passamos a julgar a nós mesmos e a nossos vizinhos com base nesse padrão inatingível. É muito cruel, convenhamos, e causa demasiado sofrimento inútil.
Já se tivermos como deuses seres extraordinários, mas falíveis, cheios de imperfeições, talvez tenhamos mais chance de alcançar a paz de espírito. Não se trata de cair na amoralidade, mas de erigir uma moral ao alcance do homem. Não custa experimentar.

Telê humano
Não posso deixar de inserir Telê Santana nesta reflexão sobre a falibilidade dos grandes homens. Agora que Telê morreu, foi imediatamente canonizado, como costuma acontecer entre nós. Mas, até por respeito à sua memória, cabe lembrar que ele também não foi perfeito. Cometeu, por exemplo, o equívoco de cortar Renato Gaúcho da seleção às vésperas da partida para a Copa de 1986, mantendo no grupo Leandro, que tinha praticado a mesma indisciplina. (Em solidariedade a Renato, Leandro desertou.) Telê declarou também que em seus times não havia lugar para homossexuais. Mostrou-se teimoso e ranzinza inúmeras vezes, despertando o rancor de alguns de seus comandados. Mas, poxa, foi um grande técnico e um homem honrado. Precisava mais?


E-mail - jgcouto@uol.com.br

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