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FUTEBOL
Uma chance para o politeísmo
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
O brasileiro, já dizia Glauber Rocha, tem um certo
pendor para a monarquia. Temos
o rei do futebol, a rainha da uva,
o rei da voz, e por aí vai. Até rei da
corrupção, se bobear, a gente elege, ou melhor, unge.
Vem daí essa discussão toda sobre Ronaldinho x Pelé. Para uns,
o jogador gaúcho já estaria disputando o trono com o -passe a
palavra- Rei. A julgar pelas declarações de Pelé fora de campo e
pelas atuações de Ronaldinho
dentro dele, nenhum dos dois está
muito preocupado com isso.
Pelé admitiu tranqüilamente
que Ronaldinho faz coisas que ele
não sabia fazer. O craque do Barcelona, por sua vez, continua jogando como se estivesse se divertindo na praia ou no quintal de
sua casa. São homens serenos, em
paz com a glória, seguros de seu
caráter de semideuses.
Já que falamos em deuses, o
problema talvez seja anterior ao
apego à monarquia. Talvez tenha
a ver com o monoteísmo. Por que
não imaginarmos, como os povos
pagãos, um Olimpo com uma
porção de deuses, cada qual com
seus atributos e sua luz própria?
No nosso Olimpo (ou pelo menos no meu), além de Pelé e Ronaldinho, haveria lugar para
Garrincha, Rivellino, Zico, Romário, Cruyff, Maradona, Platini e
muitos outros.
Nessa mudança de paradigma
da divindade haveria uma vantagem adicional. O Deus do monoteísmo se escreve com maiúscula,
é absoluto, infalível e intocável.
Em Sua defesa, os fiéis são capazes de matar e morrer.
Já o politeísmo admite a falibilidade dos deuses, cada um com
suas manias e fraquezas. Eles estão mais próximos dos mortais e
não ensejam nenhuma carnificina purificadora. Podemos até rir
deles, sem deixar de amá-los.
Pense bem: de quanto desconforto você seria poupado se não
precisasse quebrar a cabeça para
conciliar o futebol luminoso de
Pelé com as patacoadas que ele
diz e faz na sua identidade de Edson.
Pense nas torturantes contradições de Romário, de Ronaldo, de
Edmundo. Poderíamos adorá-los
sem culpa, como um cidadão grego adorava Zeus mesmo sabendo
que ele era um mulherengo sem
escrúpulos, a ponto de se metamorfosear em cisne para comer a
mulher do próximo. E olhe que ele
era o manda-chuva entre os deuses do Olimpo.
Meu amigo Luiz Maria Veiga,
citando um autor cujo nome não
lembro, disse que Deus existe,
quer tenha criado o homem, quer
tenha sido criado por este.
O imaginário tem tanta força
quanto o real. Aliás: faz parte do
real. Se imaginamos um deus sem
mácula, tirânico e exigente, passamos a julgar a nós mesmos e a
nossos vizinhos com base nesse
padrão inatingível. É muito cruel,
convenhamos, e causa demasiado
sofrimento inútil.
Já se tivermos como deuses seres
extraordinários, mas falíveis,
cheios de imperfeições, talvez tenhamos mais chance de alcançar
a paz de espírito. Não se trata de
cair na amoralidade, mas de erigir uma moral ao alcance do homem. Não custa experimentar.
Telê humano
Não posso deixar de inserir Telê Santana nesta reflexão sobre
a falibilidade dos grandes homens. Agora que Telê morreu,
foi imediatamente canonizado,
como costuma acontecer entre
nós. Mas, até por respeito à sua
memória, cabe lembrar que ele
também não foi perfeito. Cometeu, por exemplo, o equívoco de cortar Renato Gaúcho da
seleção às vésperas da partida
para a Copa de 1986, mantendo
no grupo Leandro, que tinha
praticado a mesma indisciplina. (Em solidariedade a Renato,
Leandro desertou.) Telê declarou também que em seus times
não havia lugar para homossexuais. Mostrou-se teimoso e
ranzinza inúmeras vezes, despertando o rancor de alguns de
seus comandados. Mas, poxa,
foi um grande técnico e um homem honrado. Precisava mais?
E-mail - jgcouto@uol.com.br
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