São Paulo, sexta-feira, 23 de junho de 2006

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Tá tudo combinado

Na Liberdade, a comunidade japonesa vibra uma, duas, três vezes com o mesmo gol, tudo como pedem as câmeras de TV

XICO SÁ
COLUNISTA DA FOLHA

Amigo torcedor, amigo secador, estava tudo combinado ontem na Liberdade. O único lugar do mundo onde secar e torcer são a mesma coisa, o mesmo verbo. Se o Japão atacava, a comunidade japonesa ia à loucura, se o Brasil estava com a bola na área deles, os orientais e descendentes enlouqueciam da mesma forma. A arte zen de ver a Copa e tocar a vida.
Se os repórteres de TV pediam, eles faziam qualquer coisa, tocavam pandeiros, batiam tambores primitivos e até repetiam a vibração dos gols muito depois do ocorrido, muito depois do repeteco.
Sushi, sashimi, saquê, cerveja, cachaça, estava tudo combinado. E tinha mais jornalistas, repórteres, fotógrafos e câmeras do que gente de fato no Bunkio, o ginásio esportivo da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa. Aos 20min de jogo, a repórter da Globonews grava um boletim. A colônia não andava das mais vibrantes nessa hora. Ela pede, gesticulando como quem toca um pandeiro, para que o jovem japa, metade do rosto Brasil, metade Japão, toque.
Êêêêêê. A colônia se levanta. E, assim por diante, essa vibração metade verdadeira, metade ensaiada. Tudo combinado.
Agora a repórter da Record pede ânimo a outro nissei, é assim que funciona o espetáculo, nem sempre a realidade colabora, saco! Com a camisa 9 do Ronaldo, Ewerton Hirayama, 28, que trabalha no mercado financeiro, repete para as câmeras a vibração que deveras sente: gol do Brasil, 1 x 1. Mas, quando ele vibra para as TVs, o goleiro japonês nem se lembra mais do gol que havia tomado, faz tempo, além, muito além do repeteco.
Zen, a repórter da TV Cultura entende de futebol à vera. Largo o telão e vejo o jogo pelas suas unhas, bocas e gestos.
A dupla Ooi e Osako, da TV Tokyo, pelo que compreendi com meu inglês breaco, é a mais séria. Não desgruda de uma família composta por duas gerações que representam a imigração nipônica.
Não desgruda, só documenta, sem intervenções nem falas. A mesma família era o que havia de mais interessante para o estudante de jornalismo Bruno Diniz, 20, que fazia a sua primeira videorreportagem para a TV da Universidade Metodista.
Ele também sabia que o melhor é ver e ouvir na moita, sem teleguiar a existência, com a generosidade de um Eduardo Coutinho ou de qualquer outro grande documentarista. Uma coisa assim como pedir: vida, aconteça na minha frente!
Opa, lá no canto o Rodrigo Tabata, o jogador do Santos. Correria de luzes e microfones. O telão ficou nublado. Os japinhas chiaram. Apaguem as luzes. Opa, "se apagar vira suruba", gracejou Carlos Tominaga, 23, rapaz que seguia todos os movimentos da imprensa, tipo marcação homem a homem.
Opa, esbarramos com o vereador William Woo, político da comunidade que distribui tabelas da Copa e santinhos. Nem aí para Ronaldos e Robinhos. É candidato a deputado federal pelo PSDB. "Sai da frente, palhaço", berra um adolescente tão bêbado que não ouso perguntar o nome. O grito é na direção do político, não do inocente cronista que vos narra.
Opa, agora uma deusa, acho que é a Vanessa Handa, a linda garota nissei do mundo fashion. Não, não era. Mas também não era fraca. "Tenho até os mesmos hábitos que ela, faço academia, ioga e artes marciais", afirma a deusa que atende pelo nome de Brenda Mori, 21. Prazer em conhecê-la. Dali por diante, entendi a arte zen de torcer por qualquer pátria, qualquer coisa.
Opa, Chacrinha não. O que faz o Abelardo Barbosa numa festa japonesa. Era o próprio, vestido a caráter. Tudo combinado. O Chacrinha paulista vai ao lugar certo do crime: onde houver flashes da Copa.
Chacrinha procura a TV como a bola procura o craque. Ama aparecer, somente isso, simples, divina comédia dos 15 minutos. Para ganhar a vida, no entanto, ele acorda de sonhos intranqüilos, em quase todas as manhãs, veste terno e gravata e vira o advogado Wilson Ribeiro, 66, causas cíveis.


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