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FUTEBOL
A palavra e as coisas
JOSÉ ROBERTO TORERO
COLUNISTA DA FOLHA
Muita gente já disse que o
futebol é um reflexo da nossa sociedade. Pode-se concordar
ou não, mas que às vezes essa teoria faz sentido, faz. O futebol que
a seleção vem apresentando nos
últimos anos, por exemplo, parece
bem um retrato dos anos FHC: toquinho daqui, toquinho dali e solução que é bom, nada.
Para se verificar a validade de
tal premissa, seria preciso perguntar: qual a principal característica
da nossa sociedade? Eu diria que
é a falta de harmonia social. Vivemos num país onde muitos ganham pouco e poucos ganham
muito. Muitos enfrentam dificuldades para viver e são explorados, enquanto poucos vivem de
especulações e fazem seus negócios à margem da lei e da justiça.
Muitos vivem como plebeus,
poucos vivem como reis.
Será que essa discriminação
ocorre também no futebol? Sou
obrigado a dizer que sim. Os gramados também assistem a uma
espécie de luta de classes em que
os menos favorecidos têm que
amargar um tratamento de segunda classe, e isso vai desde a
não marcação de uma falta à maneira como os narradores se referem às suas jogadas e jogadores.
O leitor William Freitas Lopes,
um revoltado bugrino, levantou o
caso numa mensagem que me
mandou há algum tempo:
Quando o goleiro de um time
pequeno faz uma defesa, ela sempre é sensacional, milagrosa e
sempre evita um gol certo de um
grande atacante. Já quando o goleiro do time grande faz uma defesa parecida com aquela o comentário é: "Bela defesa no chute
do camisa nove"."
Pênaltis em favor de times pequenos geralmente são descritos
como jogada duvidosa ou lance
polêmico. Porém, quando a jogada é favorável ao time grande, o
raciocínio do juiz tende a ser muito mais rápido e, por todos os cantos do estádio, ouve-se que foi um
"pênalti indiscutível".
Poderíamos acrescentar alguns
exemplos:
As faltas dos zagueiros de times
pequenos invariavelmente são tidas como mais violentas, feias e
duras. Os becões dos times grandes apenas param a jogada com
uma intervenção providencial.
A substituição feita pelo time
pequeno é para fechar o meio-campo e segurar o resultado. Já a
substituição feita no time grande
é para dar mais velocidade ao
ataque e pôr fogo no jogo.
Na dividida, o jogador do time
pequeno é desleal, o do time grande é viril.
O carrinho do jogador de time
pequeno é um atentado contra
um colega de profissão, o do jogador de time grande é demonstração de garra.
Cartões amarelos e vermelhos
são dados em muito maior número e com muito maior assiduidade para os jogadores dos times pequenos. Os jogadores de times
grandes costumam receber uma
advertência verbal; às vezes muito severa, é verdade.
Da mesma forma, impedimentos ocorrem com mais freqüência
nas suas jogadas ofensivas. Não
sei se os lançadores não têm visão
de jogo ou se os atacantes é que
são precipitados, o fato é que os
auxiliares não pensam duas vezes
antes de levantar a bandeira
quando um jogador de time pequeno aparece mais ou menos livre de marcação e com chances de
marcar um gol. Quando o atacante do time grande aparece
meio sozinho, ele estava na mesma linha.
Vitórias dos times pequenos são
surpresas, fatos inesperados,
aberrações da natureza; aliás, vitórias de times pequenos normalmente nem são descritas como vitórias e sim como derrotas de times grandes. Já quando são eles
que vencem, apenas confirma-se
a superioridade técnica e tática
de uma equipe mais capacitada.
Esses casos, reais e semânticos,
são reflexo de uma mentalidade,
a mentalidade que leva um Eurico Miranda da vida a dizer que times grandes nunca deveriam ser
rebaixados. Por quê? Porque sim,
porque trata-se de uma certeza à
priori, de um conceito absoluto,
de uma verdade universal. A conseqüência disso? Monstruosidades como a Copa João Havelange.
O futebol (e o Brasil) será um
pouco menos injusto quando tivermos oportunidades normais
de ascenso e descenso, como nos
países sérios. Aí os grandes terão
que dar o sangue para continuar
sendo grandes e os pequenos poderão lutar por seu espaço.
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