São Paulo, sexta-feira, 27 de outubro de 2000

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FUTEBOL
A palavra e as coisas

JOSÉ ROBERTO TORERO
COLUNISTA DA FOLHA

Muita gente já disse que o futebol é um reflexo da nossa sociedade. Pode-se concordar ou não, mas que às vezes essa teoria faz sentido, faz. O futebol que a seleção vem apresentando nos últimos anos, por exemplo, parece bem um retrato dos anos FHC: toquinho daqui, toquinho dali e solução que é bom, nada.
Para se verificar a validade de tal premissa, seria preciso perguntar: qual a principal característica da nossa sociedade? Eu diria que é a falta de harmonia social. Vivemos num país onde muitos ganham pouco e poucos ganham muito. Muitos enfrentam dificuldades para viver e são explorados, enquanto poucos vivem de especulações e fazem seus negócios à margem da lei e da justiça.
Muitos vivem como plebeus, poucos vivem como reis.
Será que essa discriminação ocorre também no futebol? Sou obrigado a dizer que sim. Os gramados também assistem a uma espécie de luta de classes em que os menos favorecidos têm que amargar um tratamento de segunda classe, e isso vai desde a não marcação de uma falta à maneira como os narradores se referem às suas jogadas e jogadores.
O leitor William Freitas Lopes, um revoltado bugrino, levantou o caso numa mensagem que me mandou há algum tempo:
Quando o goleiro de um time pequeno faz uma defesa, ela sempre é sensacional, milagrosa e sempre evita um gol certo de um grande atacante. Já quando o goleiro do time grande faz uma defesa parecida com aquela o comentário é: "Bela defesa no chute do camisa nove"."
Pênaltis em favor de times pequenos geralmente são descritos como jogada duvidosa ou lance polêmico. Porém, quando a jogada é favorável ao time grande, o raciocínio do juiz tende a ser muito mais rápido e, por todos os cantos do estádio, ouve-se que foi um "pênalti indiscutível".
Poderíamos acrescentar alguns exemplos:
As faltas dos zagueiros de times pequenos invariavelmente são tidas como mais violentas, feias e duras. Os becões dos times grandes apenas param a jogada com uma intervenção providencial.
A substituição feita pelo time pequeno é para fechar o meio-campo e segurar o resultado. Já a substituição feita no time grande é para dar mais velocidade ao ataque e pôr fogo no jogo.
Na dividida, o jogador do time pequeno é desleal, o do time grande é viril.
O carrinho do jogador de time pequeno é um atentado contra um colega de profissão, o do jogador de time grande é demonstração de garra.
Cartões amarelos e vermelhos são dados em muito maior número e com muito maior assiduidade para os jogadores dos times pequenos. Os jogadores de times grandes costumam receber uma advertência verbal; às vezes muito severa, é verdade.
Da mesma forma, impedimentos ocorrem com mais freqüência nas suas jogadas ofensivas. Não sei se os lançadores não têm visão de jogo ou se os atacantes é que são precipitados, o fato é que os auxiliares não pensam duas vezes antes de levantar a bandeira quando um jogador de time pequeno aparece mais ou menos livre de marcação e com chances de marcar um gol. Quando o atacante do time grande aparece meio sozinho, ele estava na mesma linha.
Vitórias dos times pequenos são surpresas, fatos inesperados, aberrações da natureza; aliás, vitórias de times pequenos normalmente nem são descritas como vitórias e sim como derrotas de times grandes. Já quando são eles que vencem, apenas confirma-se a superioridade técnica e tática de uma equipe mais capacitada.
Esses casos, reais e semânticos, são reflexo de uma mentalidade, a mentalidade que leva um Eurico Miranda da vida a dizer que times grandes nunca deveriam ser rebaixados. Por quê? Porque sim, porque trata-se de uma certeza à priori, de um conceito absoluto, de uma verdade universal. A conseqüência disso? Monstruosidades como a Copa João Havelange.
O futebol (e o Brasil) será um pouco menos injusto quando tivermos oportunidades normais de ascenso e descenso, como nos países sérios. Aí os grandes terão que dar o sangue para continuar sendo grandes e os pequenos poderão lutar por seu espaço.


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