São Paulo, quarta-feira, 29 de maio de 2002

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TURISTA OCIDENTAL

No centro de Seul, a 511ª manifestação semanal em frente à Embaixada do Japão

O BANQUINHO DAS EX-ESCRAVAS SEXUAIS

MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A SEUL

Vendo estas mulheres assim de perto, ao vivo, de carne e osso, custa-se a acreditar que tudo tenha se passado como se passou.
E tudo aconteceu exatamente como hoje se sabe. Depoimentos são centenas. Fotografias também existem. Organismos multilaterais, como a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, escarafuncharam até reconstituir as passagens mais sórdidas.
O vínculo supremo com o passado é a memória destas octogenárias e septuagenárias. O que para alguns parece remoto, para elas foi ontem. Quando muito, anteontem. Não cicatrizou.
É pontualmente meio-dia de quarta-feira no centro de Seul. O sol de verão incendeia a primavera na Coréia do Sul. Sentadas em banquinhos, dez mulheres se postam na calçada em frente à Embaixada do Japão.
Diante delas, uma tropa de policiais com idade para ser seus netos ou bisnetos as contempla expondo cassetetes de dimensões pornográficas e escudos. Começa a 511ª manifestação semanal das ex-escravas sexuais.
São sobreviventes. De 1932 a 1945, o Exército Imperial Japonês recrutou à força cerca de 200 mil mulheres para servirem sexualmente aos seus soldados e oficiais nos fronts de guerra asiáticos.
A maioria era de coreanas. Ficava mais fácil: em 1910, o Japão anexara a Coréia na marra. Sairia em 1945. Em 1992, contavam-se apenas 300 coreanas vivas. Hoje não são mais de 140.
Com as mulheres em silêncio, em seus banquinhos, integrantes de um movimento de apoio à punição de criminosos de guerra narram ao microfone coisas do passado. De mulheres que estão ali, que não estão, que morreram.
Chung Seo-woon foi arrastada para a Indonésia. Depois contaria não ter entendido o que um médico militar japonês fez ao lhe penetrar uma barra de ferro quente. Descobriu que fora uma das 3.000 esterilizadas em Jacarta. De segunda a sexta, suportava 50 militares por dia. Sábado e domingo, cem. Nunca pôde ter filhos.
Chong Ok-sun foi carregada aos 13 anos. Resistiu, desvirginaram-na com um cassetete. Viu outra coreana reclamar e ter a cabeça arrancada com uma espada. Uma escrava foi retalhada. Chong nunca mais teve intercurso. Por causa da dor e do trauma.
Cessam os discursos. Os cerca de 80 presentes, dos quais 16 freiras católicas, entoam cânticos. Palavras de ordem. Punhos cerrados. Levanta do banquinho a única ex-escrava a discursar hoje: Yoon Sun-man, 83. Recomeça, agora de costas para as companheiras e de frente para a embaixada, a reviver a sua saga.
Boa parte das mais de 100 mil coreanas foi sequestrada quando tinha de 14 a 18 anos. O Exército Imperial Japonês temia a proliferação de doenças venéreas. Por isso queria virgens. Não adiantava mentir, falar em marido. Os cabelos denunciavam a condição conjugal. Casada se penteava de um jeito, solteira de outro.
O Japão passou a construir em 1932 o que foi designado eufemisticamente de ""estações de conforto". Nelas estariam as ""comfort women", expressão em inglês que qualifica as mulheres que provêm conforto. A primeira estação foi montada em Shangai, na China. Outras foram espalhadas por toda a Ásia, porém não na Coréia.
Por isso, desavisadas, algumas coreanas aceitavam convites para trabalhar em fábricas distantes, aliviando em uma boca famílias empobrecidas e famélicas. Em vez de ir para fábricas, eram despejadas nessa espécie pouco alardeada de campo de concentração: as ""estações de conforto".
Não se tratava de prostíbulos nem de prostitutas. Não havia negócio nem nada elas recebiam para ""confortar" os militares. Submetidas a trabalho forçado, não podiam sair. Era escravidão.
Muitas tentaram fugir e foram mortas. Numa só estação, 70 foram assassinadas em 1945 horas antes do resgate por tropas dos EUA. Várias se suicidaram, ainda presas ou nas décadas seguintes.
Agora, de frente para a embaixada, Yoon Sun-man reafirma as reivindicações essenciais: que o Japão peça desculpas, puna os responsáveis ainda vivos, reconheça que houve crimes de guerra, compense as vítimas e corrija os livros que escamoteiam a tragédia das ""comfort women".
O Japão afirma que não pode responder com base nas leis sobre guerra só aprovadas em 1949, em Genebra. E que os acordos pós-Segunda Guerra Mundial (1939-45) zeraram o jogo.
Para muitas sobreviventes, o tempo não passou. Sua história permanece tabu até na Coréia. Depois da guerra, elas eram consideradas prostitutas. Escondiam o passado. Na manifestação, uma delas oculta o rosto com uma folha de papel. Quatro compartilham uma casa no interior.
Até dez anos atrás faltava coragem para reaparecer e exigir o que consideram seus direitos. O primeiro protesto foi em janeiro de 1992, numa quarta-feira. Não pararam mais. Sempre às 12h.
Yoon Sun-man, escravizada em 1941, termina o discurso da quarta passada. Às 12h30, nem um minuto a mais ou a menos, elas vão embora com os banquinhos. Kim Sun-duk, 79, diz ao estrangeiro persistir porque injustiças devem ser punidas. E Yoon Sun-man, numa última frase, se vira e acrescenta: ""Eu não posso morrer antes de ouvir desculpas".



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