São Paulo, quarta-feira, 29 de maio de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARÇAL AQUINO

Peneira

Eles começam a chegar bem antes da hora marcada. Sentam-se na beira do campo de um jeito tímido, um distante do outro. A maioria veste roupas surradas, e todos seguram suas chuteiras como se fossem coisas preciosas.
Um mulatinho franzino encosta-se no alambrado e olha com curiosidade para o menino loiro que está chegando, o único acompanhado por um adulto, o pai, na certa. O homem examina os outros meninos, como se estivesse avaliando as chances de cada um, e parece satisfeito com o que vê. O garoto loiro diz alguma coisa para ele, e os dois sorriem.
Nesse momento, um outro menino encosta-se ao seu lado no alambrado. Tem a mesma altura que ele, a cabeça raspada e o rosto marcado de espinhas. É ele quem puxa conversa.
""A gente não se encontrou no Juventus?"
O mulato balança a cabeça, diz que nunca passou por lá. E nota que o outro continua a encará-lo. ""Tem certeza?"
O mulato afirma que já esteve na Lusa e no Nacional, mas nunca passou pelo Juventus. O outro abre a boca num sorriso de dentes tortos, cruza os braços e observa o homem que acabou de transpor o portão do alambrado.
Ele veste um agasalho cinza, que não esconde a barriga pronunciada, e caminha com rapidez até o centro do campo. Foi goleiro num tempo em que ninguém ali havia nascido, com exceção do homem que acompanha o filho. Um goleiro de glórias magras e que não fez história. Ele apita para que os meninos se aproximem e começa a separá-los em dois grupos.
O mulato informa que é canhoto, mas nem tem tempo de dizer que gosta de jogar pelo meio: é escalado na ponta esquerda, e engole um protesto.
Começa o jogo. O ex-goleiro permanece à margem do gramado, acompanhando a movimentação dos meninos. De vez em quando, dá alguma instrução para um deles. Ou alguma bronca. Sempre aos berros.
O mulato pega na bola três vezes. Na primeira, cobra um lateral para um companheiro e se desloca, mas não recebe a bola de volta. Na segunda vez, livra-se de seu marcador com ginga e facilidade e, ao chegar à entrada da grande área, em vez de tentar um cruzamento para a área, resolve chutar para o gol. O chute, porém, sai fraco, e o goleiro, o garoto que veio acompanhado pelo pai, defende sem maiores problemas. Quando passa ao seu lado, o menino de rosto espinhento e cabeça raspada resmunga: ""Fominha, hein?".
Então o jogo muda de lado, e o mulato passa um bom tempo sem chance de tocar na bola. Até que abandona sua posição e vai lutar por ela no meio-de-campo. Consegue recebê-la e, depois de passar por três adversários, acaba sendo derrubado.
Pouco depois, o ex-goleiro apita o final do jogo. Os meninos começam a deixar o gramado e são substituídos por um novo grupo de jogadores. O mulato tira as chuteiras e espera, encostado no alambrado. Sente um frio na barriga quando o ex-goleiro se aproxima apontando os aprovados no teste e dispensando os preteridos.
Ele vê que, ao ser escolhido, o menino loiro olha para o pai, que acompanhou o jogo da arquibancada de madeira, e faz um sinal de positivo. O mulato nem chegou a conhecer seu pai. Vive com a mãe e a irmã mais nova, numa favela do outro lado da cidade. E é na mãe que ele pensa quando o ex-goleiro toca seu ombro e diz que foi aprovado.
O garoto de cabeça raspada passa por ele, cabisbaixo e dispensado. E lhe deseja boa sorte, mas o mulato não chega a ouvir. Está sonhando. E acorda naquele instante, suado, no barraco em que vive com a mãe e a irmã.
Ele sai da cama, pega as chuteiras e corre até o ponto de ônibus. É hoje o grande dia em que vai se tornar jogador de futebol.


Marçal Aquino, 44, é jornalista, escritor e roteirista dos longas ""O Invasor", ""Ação Entre Amigos" e ""Os Matadores"



Texto Anterior: Turista Ocidental: O Banquinho das ex-escravas sexuais
Próximo Texto:
FOLHA ESPORTE
Guga aguarda aval da chuva

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.