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MARÇAL AQUINO
Peneira
Eles começam a chegar bem
antes da hora marcada.
Sentam-se na beira do
campo de um jeito tímido, um
distante do outro. A maioria veste roupas surradas, e todos seguram suas chuteiras como se fossem coisas preciosas.
Um mulatinho franzino encosta-se no alambrado e olha com
curiosidade para o menino loiro
que está chegando, o único acompanhado por um adulto, o pai, na
certa. O homem examina os outros meninos, como se estivesse
avaliando as chances de cada
um, e parece satisfeito com o que
vê. O garoto loiro diz alguma coisa para ele, e os dois sorriem.
Nesse momento, um outro menino encosta-se ao seu lado no
alambrado. Tem a mesma altura
que ele, a cabeça raspada e o rosto marcado de espinhas. É ele
quem puxa conversa.
""A gente não se encontrou no
Juventus?"
O mulato balança a cabeça, diz
que nunca passou por lá. E nota
que o outro continua a encará-lo.
""Tem certeza?"
O mulato afirma que já esteve
na Lusa e no Nacional, mas nunca passou pelo Juventus. O outro
abre a boca num sorriso de dentes tortos, cruza os braços e observa o homem que acabou de
transpor o portão do alambrado.
Ele veste um agasalho cinza,
que não esconde a barriga pronunciada, e caminha com rapidez até o centro do campo. Foi
goleiro num tempo em que ninguém ali havia nascido, com exceção do homem que acompanha
o filho. Um goleiro de glórias magras e que não fez história. Ele
apita para que os meninos se
aproximem e começa a separá-los em dois grupos.
O mulato informa que é canhoto, mas nem tem tempo de dizer
que gosta de jogar pelo meio: é escalado na ponta esquerda, e engole um protesto.
Começa o jogo. O ex-goleiro
permanece à margem do gramado, acompanhando a movimentação dos meninos. De vez em
quando, dá alguma instrução para um deles. Ou alguma bronca.
Sempre aos berros.
O mulato pega na bola três vezes. Na primeira, cobra um lateral para um companheiro e se
desloca, mas não recebe a bola de
volta. Na segunda vez, livra-se de
seu marcador com ginga e facilidade e, ao chegar à entrada da
grande área, em vez de tentar um
cruzamento para a área, resolve
chutar para o gol. O chute, porém, sai fraco, e o goleiro, o garoto que veio acompanhado pelo
pai, defende sem maiores problemas. Quando passa ao seu lado, o
menino de rosto espinhento e cabeça raspada resmunga: ""Fominha, hein?".
Então o jogo muda de lado, e o
mulato passa um bom tempo sem
chance de tocar na bola. Até que
abandona sua posição e vai lutar
por ela no meio-de-campo. Consegue recebê-la e, depois de passar por três adversários, acaba
sendo derrubado.
Pouco depois, o ex-goleiro apita
o final do jogo. Os meninos começam a deixar o gramado e são
substituídos por um novo grupo
de jogadores. O mulato tira as
chuteiras e espera, encostado no
alambrado. Sente um frio na barriga quando o ex-goleiro se aproxima apontando os aprovados no
teste e dispensando os preteridos.
Ele vê que, ao ser escolhido, o
menino loiro olha para o pai, que
acompanhou o jogo da arquibancada de madeira, e faz um sinal de positivo. O mulato nem
chegou a conhecer seu pai. Vive
com a mãe e a irmã mais nova,
numa favela do outro lado da cidade. E é na mãe que ele pensa
quando o ex-goleiro toca seu ombro e diz que foi aprovado.
O garoto de cabeça raspada
passa por ele, cabisbaixo e dispensado. E lhe deseja boa sorte,
mas o mulato não chega a ouvir.
Está sonhando. E acorda naquele
instante, suado, no barraco em
que vive com a mãe e a irmã.
Ele sai da cama, pega as chuteiras e corre até o ponto de ônibus.
É hoje o grande dia em que vai se
tornar jogador de futebol.
Marçal Aquino, 44, é jornalista, escritor
e roteirista dos longas ""O Invasor",
""Ação Entre Amigos" e ""Os Matadores"
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