São Paulo, sábado, 30 de outubro de 2004

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FUTEBOL

Por quem os sinos dobram

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Nunca houve minuto de silêncio tão sentido. Diferentemente do que acontece quando é feita burocraticamente a homenagem póstuma ao parente de um obscuro ex-diretor de clube ou federação, o anúncio da morte de Serginho nos abalou e calou.
Três dias depois de acompanhar pela TV as imagens traumáticas das tentativas de reanimar o jogador no campo do Morumbi, confesso que não sei o que dizer. (Então cale a boca, dirá o leitor impaciente, não sem razão).
Escrever sobre o Campeonato Brasileiro, os craques, os pernas-de-pau, as chances dos times, a convocação da seleção -tudo parece frívolo, superficial, vazio.
Por outro lado, pegar carona na comoção geral e invectivar contra a falta de infra-estrutura de emergência nos estádios ou a rotina estafante que transforma atletas em máquinas me parece de um oportunismo intolerável.
O fato é que, diante da morte, da morte transmitida ao vivo no momento em que menos pensávamos nela, em que mais nos sentíamos plenos de vida, de repente nos vemos frágeis e ridiculamente impotentes.
Acho que foi Sartre quem disse que, depois de Auschwitz, a poesia não fazia mais sentido. Entendo, ou acho que entendo, mas discordo.
Ao relembrar a bomba de Hiroshima, Pablo Neruda escreveu: "Quiséramos ser cavalos, inocentes cavalos", para não fazer parte da mesma espécie "do calcinador e do calcinado". Ao horror, o poeta chileno respondeu com poesia.
Sartre e Neruda estavam falando de tragédias coletivas, multitudinárias, e aqui falamos da morte de um único indivíduo. Mas, do ponto de vista moral e humano, talvez não haja tanta diferença assim. A morte de um homem sinaliza a condição frágil e efêmera de todos os homens. O choque nos lembra, numa vertigem, que nosso destino é morrer.
Peço desculpas aos leitores pelos clichês, pela argumentação desconexa e pelo sentimentalismo barato, mas literalmente me faltam palavras. Para tentar compensar essa prosa ruim que lhes imponho, aproveito o espaço que me resta para transcrever um texto antigo, de quase 400 anos, um trecho célebre da "Meditação 17" do poeta e religioso inglês John Donne (1572-1631), na tradução de Paulo Vizioli.
"Nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica menor, como se tivesse perdido um promontório, ou perdido o solar de um teu amigo, ou o teu próprio. A morte de qualquer homem diminui a mim, porque na humanidade me encontro envolvido; por isso, nunca mandes indagar por quem os sinos dobram; eles dobram por ti".
É possível que em nossos tempos cínicos o humanismo radical de John Donne soe carola ou ingênuo. Talvez seja por isso que o mundo hoje, do Iraque ao Haiti, de Jerusalém ao Capão Redondo, é essa beleza que estamos vendo.

O dever de apurar
Tudo o que escrevi ao lado não exime a imprensa de seu papel de investigar as circunstâncias concretas da morte de Serginho, nem tira da polícia o dever de apurar responsabilidades. Há que aperfeiçoar também, é claro, as condições de atendimento médico nos estádios, bem como melhorar o acompanhamento da saúde dos jogadores. É muito difícil emitir juízos sem conhecer os fatos a fundo, mas tudo indica que na morte de Serginho houve, ao lado da chamada "fatalidade", um tanto de negligência do clube, que insiste em dizer que o atleta não tinha problema de saúde. Se tudo tivesse sido feito de modo transparente -como no caso de Washington, por exemplo-, não estaríamos com essa desconfiança diante dos dirigentes do Azulão.

E-mail jgcouto@uol.com.br


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