UOL


São Paulo, sexta-feira, 31 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FUTEBOL

Zé Cabala e o factótum

JOSÉ ROBERTO TORERO
COLUNISTA DA FOLHA

Gulliver varria a frente da casa quando cheguei. Antes de lhe dizer bom dia, perguntei por aquele que vê além dos olhos, por aquele que é o demiurgo dos demiurgos, por aquele que não conhece os limites de tempo e espaço, por aquele que...
- Zé Cabala está jogando sinuca no bar, vou chamá-lo.
Naquele meio tempo entrei para a já conhecida sala onde se avistavam a túnica e o turbante, a indumentária que o mundo, no futuro, há de reverenciar como um sudário do saber esportivo.
O mestre chegou minutos depois. Estava com os olhos vermelhos e falava com a língua levemente enrolada:
- O que você quer desta vez?
- Divino professor, hoje gostaria de falar com Coelho Neto.
Zé Cabala recuou na cadeira, fez uma ar professoral e disse:
- Data vênia, egrégio cronista, por que razão quereis que eu deixe as pulquérrimas plagas e venha falar do fero desporto sobre o qual perorais?
Tratei de corrigi-lo.
- Não, mestre, não é com o escritor Coelho Neto que quero falar, e sim com o filho dele, João Coelho Neto.
- Ah, o Preguinho!
Passaram-se alguns segundos e então o profeta maior começou a correr em volta do quarto, depois dar braçadas de natação em cima da mesa, depois juntou duas cadeiras e, pegando uma vassoura, fingiu que remava no ar. Perguntei se já podia me comunicar com o filho do famoso escritor:
- Claro que pode, amigo. Desculpe falar enquanto faço essas atividades todas, mas é que, quando vivia aqui embaixo, eu adorava os esportes.
- O sr. não jogou só futebol?
- Não, também pratiquei basquete, natação, pólo aquático, remo, saltos ornamentais, atletismo, vôlei e hóquei sobre patins. Sabia que eu ganhei 387 medalhas e conquistei 55 títulos?
- Não. E acho que nunca tinha ouvido falar de nada parecido.
- O importante é que, mesmo com isso, eu ainda arranjei tempo para marcar 184 gols pelo Flu.
- O senhor foi um apaixonado pelo tricolor, não foi?
- Quando eu nasci, meu pai tinha acabado de comprar uma casa vizinha ao estádio. Pode-se dizer que eu fui criado no clube.
- O senhor poderia contar alguma história desse tempo?
- Uma passagem interessante aconteceu em 1925. De manhã eu participei de uma prova de natação, os 600 m livre, em Botafogo, ganhando o campeonato carioca da categoria para o Fluminense. Depois, mal saído da água, peguei um táxi para as Laranjeiras, entrei em campo e ajudei o time a vencer o Torneio Início num jogo contra o São Cristóvão. Parecia que eu tinha sete vidas, mas, como você está vendo, mesmo as sete vidas um dia se acabam.
- Na verdade, a única coisa que eu sabia a seu respeito é que tinha marcado o primeiro gol brasileiro em Copas do Mundo, naquele dia em que o Brasil perdeu para a Iugoslávia por 2 a 1.
O factótum tricolor ia responder quando meu guia começou a emitir chiados como da internet.
- A entrevista acabou. Caiu a conexão.
Eu começava a preencher o cheque quando Zé Cabala me perguntou se eu não poderia pagar duas consultas adiantado.
- Sabe como é, não tive um bom dia na sinuca.
Paguei, mas sugeri que ele deixasse o jogo e se limitasse ao sacerdócio. Nem todos podem ser bons em tudo como Preguinho.

A
Almir, Amir e Aimar eram trigêmeos. Na década de 40 eles formaram o ataque da Santíssima Trindade Esporte Clube, da cidade de Quem Quem (MG). Os três trocavam sempre de posição e, como naquele tempo as camisas ainda não tinham números, seus marcadores ficavam totalmente perdidos. O sucesso do trio durou até que Almir raspou o cabelo, Amir decidiu deixar crescer um basto bigode, e Aimar, uma vasta barba. Depois disso, os marcadores sempre sabiam quem era quem, e eles nunca mais foram os mesmos.

B
Brisa era um goleiro tão magro e leve que saltava mais do que qualquer outro. Um dia, entretanto, quando pulava para interceptar um cruzamento, soprou um repentino vento nordeste e ele foi levado pelos ares. Brisa jamais foi visto outra vez.

E-mail torero@uol.com.br


Texto Anterior: Boxe - Eduardo Ohata: A longo prazo
Próximo Texto: Olimpíada: Pessimistas, Rio e SP já falam em 2016
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.