São Paulo, quinta-feira, 31 de outubro de 2002

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FUTEBOL

Estamos no mesmo barco

SONINHA
COLUNISTA DA FOLHA

Poucas coisas são mais reconfortantes do que encontrar um policial preparado na hora do perigo. Anos atrás, meu marido saía do Morumbi com dois amigos quando deu de cara com um grande número de torcedores do outro time, prontos para o "pau". Apavorados, os três sabiam que não tinham para onde escapar e seriam moídos de pancada. Aliviadíssimos, viram a polícia aparecer, e a sua mera presença evitou o massacre.
Por outro lado, ter medo da polícia é uma sensação horrível. Meu marido também se lembra de estar entrando em um estádio e ouvir de um policial com expressão feroz: "Tá rindo de quê?". Como se rir fosse uma ameaça à segurança pública.
Já vi policiais usando seus cassetetes para fazer uma fila andar mais rápido... Também vi correrem atrás de alguém para dar umas cacetadas -caramba, quando o sujeito está fugindo, de costas, para que bater nele? E todos já vimos policiais batendo ou chutando pessoas caídas, rendidas. Uma covardia, que tem mais a ver com ódio do que com a "energia" normalmente evocada para justificar os excessos. É óbvio que os protagonistas dessas cenas são policiais despreparados. Em vez de evitar, às vezes eles mesmos criam o tumulto, a correria, o pânico e aumentam a confusão.
Gostaria de saber se os policiais são instruídos a proteger as pessoas ou a "acabar com a raça desses baderneiros". Dependendo da "preleção" antes do jogo, a sua disposição pode ser totalmente diferente. Ao menor sinal de deboche ou provocação, bastante previsível em um jogo de futebol, um PM pode ver a ameaça de um meliante. Em vez de lembrar que, em uma multidão, há pessoas de todos os tipos, ele pode enxergar apenas um bando de arruaceiros.
Sim, as pessoas perdem a identidade na multidão, fazem coisas que não fariam, sentem-se protegidas e fortes. Por isso mesmo é importante que a polícia não se volte indistintamente contra todas -porque os inocentes, duplamente ameaçados (pelos baderneiros e pelos policiais) poderão reagir de maneira irracional também, enxergando a polícia como inimigo. As consequências são terríveis para as relações em geral -cidadãos de bem contra a polícia são sinal de problema grave.
Policiais têm medo, raiva, impaciência e implicância como qualquer ser humano. Por isso mesmo, eles precisam ser treinados para não deixar que suas emoções transbordem quando têm armas e uma farda para honrar. Um médico também tem raiva, cansaço, frustração -mas não pode se deixar levar por nada disso quando empunha o bisturi.
Um policial precisa ser alguém muito especial, devotado, "incansável". Alguns são -e pagam pelos outros. Nossas generalizações ("torcida = bandidos"; "polícia = bando de incompetentes") estão sempre erradas.
O triste é que, muitas vezes, policiais e torcedores têm o mesmo perfil -vêm de lugares sem estrutura, tiveram educação deficiente, têm renda familiar baixa, não têm opções de lazer, não se sentem nem um pouco participantes da sociedade como cidadãos dignos e respeitáveis, quase nunca são respeitados...
Não é de admirar que machuquem uns aos outros quando se encontram em um estádio de futebol. Um dia, quem sabe, ainda vamos estar todos do mesmo lado, conquistando, com todo o direito, um lugar na Série A da sociedade brasileira.

Velhas questões
Há quem diga que o problema começa no fato de a polícia ser militar. O policial, treinado para a guerra, veria a multidão como um inimigo a combater e vencer, não pessoas que, em sua maioria, só querem ver um jogo e voltar inteiras para casa. É óbvio que saem bons policiais das fileiras militares. O sistema militar valoriza disciplina, abnegação e respeito à hierarquia; com base nisso, ordens expressas para não revidar uma agressão seriam cumpridas à risca. "Detenham, afastem, imobilizem os agressores. Tenham inteligência e astúcia para identificar os focos de instabilidade e isolá-los, de modo que ninguém saia ferido. O papel de vocês não é condenar ou punir, é proteger." Totalmente cientes disso e confiantes na autoridade superior a eles, os policiais seriam mais fortes, resistentes e heróicos.

E-mail
soninha.folha@uol.com.br



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