São Paulo, segunda, 1 de março de 1999

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free way
Ler e escrever; pensar e existir

GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha

Muita gente escreve perguntando como se faz pra escrever bem. (E eu sei lá? Pergunte pro Veríssimo ou pro Gaspari.) Parece que, além do 1% de inspiração que está no DNA de qualquer aspirante a Shakespeare, o que é determinante são os 99% de transpiração. O que, em matéria de escrita, só significa uma coisa: ler.
Ler é fundamental. Não só por uma série de razões práticas -aumenta seu vocabulário, seu conhecimento geral, a capacidade de expressão e a probabilidade de sucesso com as mulheres-, mas especialmente por despertar áreas adormecidas de seu cérebro. Ler a boa literatura assim como entrar em contato com artes plásticas ou música ativa a imaginação, a capacidade de abstração. Mas, mais importante, ler desenvolve a única capacidade realmente importante nessa vida, que é a de pensar.
Passando um certo ponto de leitura, a estupidez fica impossível. Você não pode ler Marx e Smith e concordar com ambos, sem se questionar sobre qual dos modelos econômicos faz mais sentido. O mesmo vale pra Platão e Maquiavel quando se fala dos governantes; Sun Tzu e Gandhi sobre a guerra; Hobbes e Thoreau sobre obediência civil; Freud, Jung, Santo Agostinho e Paulo Coelho no que diz respeito à espiritualidade etc. A lista é infinita: pra cada aspecto mais ínfimo da vida humana, há uma multidão de opiniões diferentes e quando você entra nelas é impossível que o seu cérebro, enferrujado por horas e horas de baboseira televisiva, não pegue no tranco e comece a trabalhar. Só há três dificuldades nesse processo.
A primeira é gostar de ler. Quem lê por obrigação não passa de algumas dezenas de livros e nunca entende o prazer que é a leitura. Essa idéia de que literatura é algo enfadonho é, claro, herança de todos os professores limitados que lhe mandaram ler porcaria no colégio e depois fizeram provas ou pediram "fichas de leitura" em que você, como papagaio, teve de repetir a história pra provar que leu. Duas dicas: primeiro, leia o que lhe interessa, não espere o professor lhe pegar pela mão; segundo, lute contra a mediocridade dos seus professores, exija tratamento de ser pensante.
A segunda dificuldade é saber o que ler. Lembro-me de ficar lendo as pessoas que eu admirava ou tinha respeito na minha infância pra ver o que elas liam ou recomendavam e aí tentava ler o mesmo. Acabei lendo "O Nascimento da Tragédia", de Nietszche, com uns 14 anos, achando que a tragédia mencionada era alguma hecatombe; nem idéia da tragédia grega, Sofócles ou Ésquilo. Ou seja, não dá certo. Outro caminho é ler os clássicos, aquilo que todo mundo já disse que é bom, de Homero a Proust.
Mas não adianta dar caviar pra quem nunca comeu lambari. Vai encher o saco. Comece lendo coisas que lhe interessem e que prendam a atenção, aos poucos você acaba migrando pra boa literatura, por causa das citações, referências e tal. Só não vá para aquela areia movediça de esoterismo, auto-ajuda e romance "melacueca", que porcaria vicia.
Por último, "há uma pedra no meio do caminho". Acontece pra muitos de, depois de ler meia dúzia de livros, achar que o seu lado da moeda é o único e rejeitar todo o resto como mentira. É a arrogância típica do "imbécil". Cuidado pra passar essa fase. Quanto mais se lê, mais se nota que se sabe pouco, quase nada. E que pouco na vida é imutável, definitivo, inquestionável. O que importa é desenvolver a capacidade de pensar e de julgar por si só. Até pra entender que tudo o que está escrito acima pode não passar da mais absoluta idiotice.


Gustavo Ioschpe, 22, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política na University of Pennsylvania, EUA, e-mail: desembucha@cyberdude.com




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