São Paulo, segunda-feira, 02 de setembro de 2002

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CAMINHO DE PEDRAS

Adolescentes com deficiências físicas adaptam o mundo à sua condição

Outros rumos

KATIA CALSAVARA
FREE-LANCE PARA A FOLHA

No meio do caminho, sempre há pedras, postes, buracos, escadas, poças d'água. Ao mínimo sinal de tropeço, os comentários não escapam: "Ei, por que não olha por onde anda?" Para Fernando José da Silva, 15, atravessar ruas é uma tarefa que requer atenção redobrada e toques precisos de uma bengala.
O garoto ficou cego quando tinha poucos meses de vida. Sua mãe percebeu, ainda no berço, que ele não focava o olhar nos objetos, como é típico de uma criança que começa a reconhecer o mundo. Fernando foi vítima de uma doença que ataca a retina em bebês prematuros.
O Folhateen acompanhou o trajeto que Fernando faz, sozinho, até à escola. Todo dia, ele sai de casa, em Taboão da Serra (Grande São Paulo), e segue a pé até o ponto de ônibus, distante cerca de quinze minutos.
Após molhar os pés em poças d'água e de alguns (inevitáveis) tropeços, ele chega ao ponto. "Quando não tem ninguém por aqui, dou sinal para qualquer caminhão", conta Fernando, que reconhece os veículos pelo barulho. "Eu sei a hora de descer pelas lombadas, pelo número de paradas e pelas ruas esburacadas."
Na escola, ele comenta sobre os colegas: "Aqui eles estão acostumados, mas tem gente que pensa que cego não fala. Preciso puxar assunto".
Na sala de aula, Fernando é daqueles que conversam bastante. Ele troca confidências com o amigo Raimilson Damaceno Santos, 15, que também ficou cego após complicações de uma infecção auditiva aos oito meses de idade. "Nós falamos sobre tudo: futebol, garotas, computador, escola. Também já colamos na prova. Passamos a folha por baixo da mesa", diz Raimilson, aos risos.
O professor de matemática, Rinaldo Araújo, está há poucas semanas no colégio, a Escola Municipal João XXIII. "Eles acompanham bem a aula. Mas percebi que preciso ser mais articulado", diz.
A escola onde Fernando estuda não é especial para cegos. A Constituição obriga toda escola, pública ou particular, a aceitar a matrícula de todo aluno, independentemente de seu tipo de deficiência.

Imagens e sonhos
Viver em um mundo dominado pela linguagem audiovisual pode não ser muito fácil. Mas sempre há maneiras de tirar proveito. "Quando começo a assistir a um filme, por exemplo, preciso ficar atento para memorizar a voz e o jeito dos personagens. Só é chato quando há muitas cenas com música porque tenho que adivinhar o que está acontecendo."
"Meu maior divertimento mesmo é ir à casa dos meus colegas. E, de vez em quando, eu participo de excursões para assistir a peças de teatro e a exposições". Confiante, Fernando diz: "Minha meta para este ano é ir a um estádio de futebol. Não tenho medo da multidão nem de cair". E revela que já teve vontade de ir a alguns shows, mas que teve preguiça.
Na hora de escolher o que vestir, as mães ajudam. "Mas só até eu saber o que tem no armário. Faço a minha bagunça e, quando arrumam, fico meio perdido."
Seus sonhos, como são? "Têm vozes e vultos e revivo acontecimentos daquele jeito fantasiado, de sonho mesmo."
Qual a diferença então de quem pode enxergar? "Meu mundo não tem diferença. É apenas falado", revela.



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