São Paulo, segunda, 3 de agosto de 1998

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free way
Os últimos serão os últimos

GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha

Estivesse Marx morando aqui nos dias de hoje, seria forçado a mudar sua dialética. Sairiam proletários e burgueses e entraria aquela que é a única distinção que importa (que existe?) na Gringolândia: cool e loser. Se cool é difícil de traduzir (bacana, malandro, esperto, legal etc.), loser é inapelável: perdedor. Numa sociedade que vive em guerra consigo mesma, ser o perdedor é o veredicto definitivo.
A guerra não é por terras ou independência, mas pelo nirvana geral: sucesso. O que, na maioria das vezes, se traduz em dinheiro. Quem tem sucessos e/ou dinheiro tem tudo; quem não tem fica chupando o dedo, numa sociedade já definida aqui como "winner takes all" ou "o vencedor leva tudo". Não há espaço para segundos lugares -quem não faz poeira come poeira, como já definiu outro best-seller. Essa cultura individual e materialista gera um nível de competitividade inimaginável para quem vive na solidariedade condescendente dos trópicos.
A corrida começa desde, literalmente, o jardim de infância. Em muitos já foi instituída a tradição McDonald's e se nomeia um aluno do mês, além de outros prêmios. Vai-se crescendo, o funil encolhe, e na escola os bambinos já estão com as garras afiadas e os dentes prontos para DDD (devorar, deglutir, descartar) o próximo loser. Até existe um gestual (polegar e indicador em forma de "L") para designar os degredados, numa ofensa muito mais temida do que ser chamado de ladrão, sacana ou filho da mãe.
Antes de entrar na faculdade, as feras que conseguiram entrar numa escola de prestígio já têm o rebolado e estão mais sagazes do que nunca para derrotar todo e qualquer oponente na batalha de vida ou morte: o acesso às boas universidades. As vagas são poucas, os candidatos são muitos, e vale tudo para parecer melhor e mais rentável que o próximo -mentir deslavadamente no currículo, inclusive, é prática comum.
Aqueles que passam pelo gargalo vão encontrar o "mondo cane" já delineado. Na minha faculdade, por exemplo, só uma certa porcentagem de cada classe (normalmente entre 15% e 25%) pode receber um A, a nota mais alta. Aí, salve-se quem puder. Vale tudo: desde puxar o saco do professor até correr para a biblioteca e levar todas as cópias da bibliografia recomendada. Abundam por aqui histórias de alunos que correm para tirar a caneta das mãos de seus colegas quando acaba o tempo de uma prova. Ajuda é palavrão: se você faltar a uma aula e pedir um caderno emprestado pra tirar xerox, o máximo que pode conseguir é uma sonora gargalhada.
Apesar da aura de "terra da oportunidade", onde um nerd sem diploma universitário virou o homem mais rico do planeta, os espaços são muito poucos e o imaginado elevador da mobilidade social não passa nem de escada rolante. Como mudar o sistema é tarefa hercúlea, foca-se a sanha competitiva no próximo, na ilusão de que as pequenas vitórias ganharão a grande guerra. Não vão. Apesar de país cristão, nos Estados Unidos os únicos que dão a outra face são os vendedores de cosméticos. É uma engrenagem que garante (com algumas poucas exceções, que fazem a alegria dos liberais e editores de revistas de negócios) que os últimos serão, enfim, os últimos.
Se é assim no pacato mundo universitário, imagine no mundo de verdade, onde a competição não é por notas, e, sim, por cargos, bônus e salários. Em alguns casos, chega-se até a jogar com muitas vidas para ganhar do concorrente. Mas isso é assunto para a semana que vem.


Gustavo Ioschpe, 21, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política na University of Pennsylvania, EUA, e-mail: desembucha@cyberdude.com.



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