UOL


São Paulo, segunda-feira, 03 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ESCUTA AQUI

A ousadia dos hackers, um corpo no lago, o Brasil

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
COLUNISTA DA FOLHA

Duas notícias aparentemente sem ligação atingiram o público jovem na semana passada.
Primeiro, a descoberta do corpo do estudante Gutemberg Clarindo Oliveira, 16, no fundo do lago do parque Ibirapuera, na madrugada de domingo para segunda-feira passados. Horas antes, tinha acontecido, ali perto, uma parada de música eletrônica acompanhada por cerca de 170 mil participantes.
A outra notícia, dada pelo principal jornal do mundo, o "The New York Times", classifica o Brasil como paraíso dos chamados hackers, caras que conseguem invadir até os sistemas de computação mais protegidos. Segundo o diário, os dez maiores grupos de hackers do planeta estão aqui.
Bom, mas o que esses dois fatos têm em comum?
É que ambos são sintomas de uma situação muito peculiar do país. Por um lado, temos acesso cada vez mais rápido e fácil à informação. Os chamados cybermanos, jovens de periferia que gostam de música eletrônica e lotaram a parada domingueira, ouvem basicamente os mesmos sons que seus contemporâneos da Europa.
Os hackers brasileiros, principalmente os de classe média para cima, entram na rede mundial de computadores com equipamentos e largura de banda iguais aos dos fanáticos por computação que vivem em países mais ricos.
Esse é um lado da questão. O outro é que o Brasil, mesmo mais informado e dispondo de uma tecnologia decente, ainda é uma sociedade à qual a gente vacila um pouco para associar ao adjetivo "civilizada".
Os hackers apavoram geral porque a legislação brasileira é nebulosa ou inexistente ou desatualizada. Nem no Estado mais rico do país, São Paulo, a polícia tem equipamentos e efetivo para coibir a molecada que detona no computador.
Com relação ao menino que morreu no lago, a questão é bem parecida, mas um pouco mais complexa. As fotos publicadas aqui mesmo na Folha, já na segunda-feira, mostravam cenas malucas, com dezenas de jovens se banhando em um lago imundo.
Ou seja, a mesma rapaziada que se deliciava com os sons mais modernos da Terra estava ali ao lado nadando na lama, talvez entrando no Ibirapuera pela primeira vez, talvez entrando num parque pela primeira vez.
O que eu acho que une hackers e cybermanos é esse jogo de ida-e-vinda entre rapidez de informação e barbárie. Entre ter acesso ao "cutting edge", ou seja, "às fronteiras da computação e da estética musical", e viver num país dominado pela esculhambação e por uma aparentemente eterna clivagem social.


Álvaro Pereira Júnior, 40, é editor-chefe do "Fantástico" em São Paulo
E-mail: cby2k@uol.com.br



Texto Anterior: Livros: Pequenas espionagens
Próximo Texto: Brasas
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.