São Paulo, segunda-feira, 05 de julho de 2004

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LITERATURA

Homenageado em festival literário, Guimarães Rosa é um autor que você precisa conhecer, não só porque é matéria escolar

O sertão vai a PRAIA

LUÍS AUGUSTO FISCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na quarta-feira, começa em Parati (RJ) mais uma edição da Festa Literária Internacional, Flip. É um festival em que se fala de livros e escritores. O que há de mais destacado hoje estará lá, incluindo o brasileiro Chico Buarque e o americano Paul Auster. Mas o homenageado não será nenhum autor que conte coisas do mundo moderno da cidade nem é alguém ligado ao cinema. O autor é Guimarães Rosa, homem do sertão profundo.
Guimarães Rosa é daqueles que você conhece pelo menos de ouvir falar, pois está no programa escolar e pode cair na prova. Mas ele é muito mais do que isso.
Nascido em 1908, numa cidadezinha chamada Cordisburgo, interior de Minas Gerais, João Guimarães Rosa estudou em sua terra, depois em Belo Horizonte, e formou-se em medicina. Foi trabalhar num lugarejo, conhecendo aí o mundo do sertão -aquele interior onde as coisas da cidade não tinham chegado ainda. Depois, por gostar de línguas estrangeiras e ter facilidade com elas, foi trabalhar como diplomata. Teve cargos na Europa e na América hispânica. Morreu em 1967.
Seu primeiro livro se chama "Sagarana" (1946) e causou espanto quando saiu: parecia que aquele mundo e aquela linguagem eram impossíveis. Dez anos depois, apareceu com dois livros, e o espanto que causou foi ainda maior. Um deles era uma coleção de relatos, com o título "Corpo de Baile"; o outro é um monumento, o mais instigante romance da língua portuguesa, "Grande Sertão: Veredas". Antes de morrer, ainda publicaria dois livros de contos, "Primeiras Estórias" e "Terceiras Estórias" (este com o título alternativo de "Tutaméia"). A quem perguntava por que "terceiras" sem "segundas", ele respondia que, assim, preparava o terreno para um outro volume.
O cenário dominante de sua literatura é o sertão, o mundo primitivo, da bravura por vezes selvagem, da honra a qualquer preço. Guimarães Rosa conta histórias que enfocam o contato entre o mundo bruto do sertão com algum representante do mundo urbano. Em "Grande Sertão: Veredas", quem conta a história é Riobaldo, ex-jagunço que virou fazendeiro e que, na velhice, conta sua vida e suas reflexões a um sujeito que é da cidade (e que nunca fala, só fica ali, ouvindo); por não conhecer o sertão e suas manhas, esse sujeito instiga Riobaldo a explicar detalhes daquele antigo mundo.
É um dos maiores gênios da literatura de nossa língua e do século 20. Fazer o que ele fez, com a matéria-prima antiga chamada sertão, é para poucos. O bom para nós é que ele fez em português e com isso enriqueceu a cultura de nossa língua.

Linguagem
A marca mais notável do escritor é sua linguagem. O começo de "Grande Sertão: Veredas" (leia abaixo) deixa o leitor atordoado: como entender aquela conversa, com palavras que mal entendemos? É uma mistura de vocabulário do norte de Minas, oeste da Bahia, parte de Goiás e por aí afora, mas organizado em frases de grande poesia e falado como se fosse ao vivo. Riobaldo é como um filósofo intuitivo, um sertanejo que gosta de pensar e inventar palavras e que, no início, parece preocupado com um tema que, a rigor, ocupou as melhores mentes da história humana: como se divide o Bem e o Mal? O Mal é o mesmo que o Diabo? Por que o Bem não triunfa?

Por onde começar
É difícil estabelecer uma regra geral, porque há leitores de todo tipo. Em todo caso, dos livros de Guimarães Rosa, "Sagarana" é o menos rebuscado na linguagem, o que facilita uma aproximação. Tente ler "A Hora e a Vez de Augusto Matraga", que é ao mesmo tempo um conto de ação e uma espécie de alegoria sobre o sentido da violência. Para os mais corajosos, os contos de "Primeiras Histórias" podem ser uma boa pedida. Leia "A Terceira Margem do Rio", improvável mas comovente relato sobre um pai que vai embora de casa, mas não vai totalmente, inventando, como diz o título, uma terceira margem no rio em que vai andar com a canoa. Tente a história de Miguilim, aquele menino tímido e sensível (experimente ler parte em voz alta, para perceber a imitação de fala popular que a escrita faz).
Ou então encare o desafio maior, "Grande Sertão: Veredas". É difícil, mas não perca a paciência: Guimarães Rosa, assim como Shakespeare ou Fernando Pessoa, merece o esforço. (De mais a mais, um bom enigma sempre vale a pena, não?)


Luís Augusto Fischer é professor de literatura da UFRGS e autor de "Literatura Brasileira - Modos de Usar", Editora Abril

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