São Paulo, segunda, 7 de setembro de 1998

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free way
Filo, ma non troppo

GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha

Uma das maiores provas de sucesso por aqui é doar dinheiro. Dá-se a hospitais, universidades, orquestras, ambientalistas, organizações contra o fosfato na comida de cachorro e associações das mães contra as professoras primárias que molestam seus filhos. Para cada um que você quiser ajudar -ou atrapalhar-, há um grupelho organizado que recolhe fundos e os usa para construir um prédio, conduzir pesquisa científica ou subornar um deputado. Por ano, a filantropia americana movimenta 300 bilhões de dólares, dinheiro suficiente pra pagar todas as plásticas da Dercy Gonçalves, montar a campanha do Enéas pra rei da Dinamarca e ainda sobrar troco.
A idéia prevalecente é que seria esta a forma de os mais afortunados devolverem às comunidades aquilo que dela lucraram. Seria altruísmo elogiável, não parecesse uma simples parte do marketing pessoal a que se prestam os que podem na sua luta por um lugar ao sol. Na minha universidade, por exemplo, uma doação de um ex-aluno, de US$ 10 milhões, foi destinada à construção de um novo prédio. Como o prédio inteiro vai custar US$ 100 milhões, a iniciativa do empreendedor generoso só vai lhe dar uma área igual aos 10% com que ele contribuiu.
A delimitação precisa da generosidade, longe de ser a exceção, é a regra. Se a toda ação cabe uma reação, a cada doação corresponde uma exibição. As orquestras e museus, por exemplo, dividem a filantropia em grupos: ouro, platina etc., de acordo com quanto é doado. No verso de cada programa de concerto vem a listagem dos contribuintes da orquestra, devidamente separados de acordo com as suas doações, também listadas. Dar dinheiro para uma orquestra significa, antes de tudo, mostrar aos outros quanta grana o doador tem para jogar fora, assim como quem compra uma calça Gucci de US$ 400 ou um sapato Prada por US$ 700 está interessado não em uma roupa determinada, mas, sim, em ostentar uma marca que serve de lembrete ambulante da opulência do portador. Se transplantar a lógica do mundo fashion para o mecenato gerará o mesmo mau gosto do primeiro, ainda é incerto, mas bons auspícios não traz.
O curioso -aliás, lógico- é que as instituições recipientes dessas doações, ao invés de desestimular a mercantilização, fomentam-na. Por saberem o que realmente desejam seus clientes, instituições beneméritas já não propagandeiam os resultados que a doação trará aos beneficiados, mas, sim, aos doadores.
Na minha universidade, por exemplo, os pôsteres da Cruz Vermelha pedindo doação de sangue começam com um "Free Pizza" em negrito e corpo duplo, com mais espaço para os pontos de exclamação da chamada do que para a descrição do que é preciso fazer pra levar a fatia de "pepperoni". É normal caminhar por instituições que dependem das migalhas alheias e encontrar espalhados bancos, postes e até prateleiras com o nome de alguém. O que vale é a intenção, mas o que fica é a grossura do bolso e o tamanho do desejo de autopromoção.
Assim que, até por uma questão de correção gramatical, o "filantropo" de antigamente (do grego filo, amigo, antropo, homem) deveria ser substituído por egófilo ou filoerrepê para melhor representar os que doam a si mesmos. Assim podiam guardar o vocábulo dos gregos para o único doador legítimo: o anônimo, que dispensa a promoção. Seria este o único com direito de dizer, à la Jânio, "fi-lo porque qui-lo".
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Gustavo Ioschpe, 21, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política na University of Pennsylvania, EUA, e- mail: desembucha@cyberdude.com.



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