São Paulo, Segunda-feira, 08 de Março de 1999
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MULHER

Igualdade é ter liberdade para escolher

Dado Junqueira/Folha Imagem
"Ainda rolam aquelas coisas que só mulher faz, como trabalho de casa. O homem pode chegar na mulher, mas a mulher, não" Ana Carolina Garcia, 17


FÁTIMA GIGLIOTTI
da Reportagem Local

Você acha justo o cara poder ficar com várias meninas, mas, se você ficar com vários, ser chamada de galinha? Já aconteceu de transar só para não perder o namorado? E ter a camisinha na bolsa, mas na hora H não usar porque ele não quis? Ou então lavar a louça de casa enquanto o irmão é poupado porque o trabalho é de mulher?
Isso confunde a cabeça de qualquer uma, especialmente quando se chega ao fim de um século marcado pelas conquistas da mulher. Mas, como diz a socióloga Heleieth Saffioti, a realidade não é homogênea e, além disso, é paradoxal. Ou seja: "As mudanças acontecem, mas não de maneira uniforme. Ainda se exige que a mulher contribua com o orçamento familiar e, ao mesmo tempo, continue obediente ao homem", afirma.
E quem é o responsável? É, pasme, em boa parte a mulher -você vai entender mais para a frente por quê. Antigamente, havia uma separação muito rígida entre os conceitos do que é ser homem e mulher, passados para a gente por meio da educação. "O homem era para trabalhar e ser o provedor, a mulher, para cozinhar e ter filhos, mas hoje essa diferenciação não é mais tão rígida, e isso está criando uma grande confusão entre os casais", diz a psicóloga Rosely Sayão.
Por outro lado, "as meninas de hoje receberam de bandeja as reivindicações políticas, econômicas e sociais da minha geração, acrescidas da liberdade sexual conquistada pelas mulheres de 30, 40 anos, mas não encontram sua identidade, não exercitam esses novos direitos com responsabilidade", afirma a vice-presidenta do CECF-SP (Conselho Estadual da Condição Feminina), Zuleika Alambert, que, aos 25 anos, em pleno ano de 1947, foi eleita deputada pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro).
Ou seja: as mudanças não são uniformes, masculino e feminino não são mais os mesmos, e as garotas precisam encontrar a sua identidade nessa realidade contraditória. Não é tarefa fácil, mas as entrevistadas podem ajudar.
"É preciso admitir que o preconceito e o machismo já estão na gente, só depois disso é possível repensá-los", afirma Rosely. Para ela, ainda existe machismo, o qual está nas mulheres, principalmente. A mulher não é mais a rainha do lar, mas continua sendo a responsável pela educação dos filhos e, portanto, pela transmissão do machismo.
A mãe é mais condescendente com os meninos, as meninas têm de arrumar a cama, lavar a louça, os meninos, não. Se eles namoram bastante, ótimo, já as meninas... A garota percebe, sofre, mas acaba interiorizando e transmitindo esse modelo para as filhas. E a psicóloga exemplifica: quando as garotas chamam as amigas de galinha, estão se submetendo ao pensamento dos homens de que a mulher "deve" sentir atração física com amor, não apenas atração física por atração física. "Isso reforça, desde a adolescência, a relação assimétrica entre homem e mulher."
A socióloga Heleieth pinta um quadro negro: 20% das mães brasileiras são adolescentes, e a idade da iniciação sexual já está entre 12 e 14 anos, o que gera graves problemas. Nas chamadas sociedades primitivas, a iniciação sexual coincidia com a puberdade, mas as meninas colaboravam na produção, trabalhavam desde cedo, argumenta.
Na nossa sociedade, urbano-industrial, a entrada na produção está sendo cada vez mais postergada, e as meninas procriam, mas não têm como sustentar os filhos. "As avós acabam assumindo não apenas os netos, mas também os filhos, uma situação muito difícil porque aumentam as bocas, mas não os empregos", diz Heleieth.
A conclusão é: "A mulher só conquista igualdade se tiver autonomia, se souber ser independente". "E, também, se souber escolher", acrescenta Zuleika. Para ela, as meninas hoje acham que têm liberdade sexual, uma coisa muito evoluída, moderna. "Quando nós queríamos liberdade sexual, era o direito de escolher o homem com quem você ia viver ou transar, sem o pai ou a mãe interferir, o direito de optar em ter filho ou não, de casar ou juntar", comenta.
Já as meninas "não assumem a responsabilidade pelo que receberam, o interesse em saber como vão praticar e ampliar isso", diz Zuleika. E quem são os gurus dessa geração? "Carla Perez, Tiazinha, Xuxa. As aspirações das mocinhas são ridículas, elas querem ser modelo, fazer novela, ser apresentadora de TV, é o culto à beleza."
Para a feminista, as mulheres hoje podem querer, inclusive, casar e ter filhos, mas elas têm de ter o direito de escolher. "E as meninas não têm opção porque não se preparam para optar, para ter uma mentalidade para escolher, não estudam, não lêem, são tolas."
Rosely joga mais lenha na fogueira. "Há ainda o problema, também herdado da educação, como o machismo, de as garotas pensarem que o mais importante na vida é arrumar um relacionamento afetivo." Companhia é legal, mas não é o mais importante, diz. E mais: se a menina fizer tudo para ter e manter o namorado, vai se perder, e aí o relacionamento acaba mesmo.
É por isso, diz Zuleika, que ainda existe o maníaco do parque ou as mulheres ainda apanham dos maridos, denunciam na hora da dor e três dias depois vão à delegacia retirar a denúncia. "Elas nunca pensam que podem até lavar chão, mas não precisam voltar para o homem que lhes deu um bofete e continuar escravas deles", lamenta.
Ela reconhece que a mulher é resultado da educação que recebe, da hierarquia da dominação masculina, um sistema milenar.
"Mas eu não fico com um espelhinho olhando como sou por dentro, as garotas não precisam ficar ilhadas na sua sexualidade nem usar o mito do feminino -ser gostosa, dengosa, frágil- como instrumento de dominação. Elas têm de saber ter atitude, ter igualdade na sua identidade de mulher e se sentir feliz com isso."


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