São Paulo, segunda-feira, 10 de maio de 2004

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HISTÓRIA NO CINEMA

Filme sobre Che Guevara reacende debate sobre o mito

Quem é esse cara?

France Presse
Jovem venezuelana com cartaz de Che Guevara, durante manifestação de apoio ao presidente Hugo Chávez, em Caracas


FRANCESCA ANGIOLILLO
FREE-LANCE PARA A FOLHA, DO MÉXICO

O olhar é altivo e parece tentar fixar uma utopia, um futuro possível; a aparência geral é romântica. Em uma palavra, é "sedutora" a imagem de Che Guevara (1928-1967) que se cristalizou e foi reproduzida milhões de vezes, em camisetas, pôsteres, livros e em quase todo tipo de material imprimível.
Sua foto, a mais famosa -tirada em 1960 pelo cubano Alberto Korda (1928-2001)-, reúne, nos mínimos elementos de um close-up, o que a maioria dos jovens de hoje parece ter apreendido da figura de Ernesto Guevara de la Serna, o Che: um idealista, que se agarrou com força ao seu desejo de mudar o mundo.
O potencial mercadológico da imagem de Korda não passou em branco. A figura tem sido explorada de todas as formas possíveis, a maioria das quais não tem nada a ver com o que pregava o retratado. Há, na moda, um "boom-guevara"; até biquíni ele já estampou (lembra de Gisele Bündchen?) e, mundo afora, rappers como Missy Elliot e atrizes como Elizabeth Hurley desfilam satisfeitas seu lado "revolucionário".
Che Guevara nasceu na Argentina; fez uma viagem que acaba de entrar para o cinema, pelas mãos do cineasta Walter Salles, em "Diários de Motocicleta", e depois outra; ambas mudaram seu modo de ver a América Latina. Aos poucos, se engajou na perspectiva de construir um continente coeso e livre da dominação norte-americana.
As andanças de Che Guevara estão em dois diários ("De Moto pela América do Sul", da Sá Editora, e "Outra Vez", da Ediouro), que mostram bem como no jovem médico foi se construindo a mentalidade do revolucionário. Em 1956, instalado em terras mexicanas e já engajadíssimo politicamente, Che conheceria o homem que mudaria definitivamente o seu destino: Fidel Castro. Três anos depois, lutariam lado a lado na Revolução Cubana, derrubando o ditador Fulgencio Batista (1901-1973) e instalando o atual regime comunista da ilha.
A partir daí, o caminho para o mito estava aberto, culminando com sua captura e morte na Bolívia. Lá, depois de dispensar um alto cargo no governo cubano, treinava a guerrilha. O final de "mártir", somando-se à trajetória de "herói", era o que faltava para que ele entrasse com tudo para o imaginário jovem.
Vem e vai, ele reaparece. Nos últimos anos, não há encontro antiglobalização em que não apareça. Boa parte dos que vestem a camiseta não o fazem porque sabem que, por trás do olhar perdido, Che sonhava com o "pan-americanismo". Ou por conhecerem sua rota americana. Ou, ainda, seu fracasso na África -contado em "Passagens da Guerra Revolucionária: Congo" (Record).
Parece que, além da "moda", o que move os jovens rumo à persistente figura de Che tem mais a ver com aspectos ligados à personalidade do que a seus ideais.
A maioria dos jovens entrevistados pelo Folhateen no México, por exemplo, disse "saber pouco" sobre como Che pensava. Apesar de se lembrar de conhecer sua existência "há muitíssimo tempo", quase nenhum buscou mais informação do que a ouvida quando criança.
A palavra que se destaca é "idealismo", seguida de "liberdade" pessoal ou política e de "luta anti-EUA". É sobre esse tripé que se apóia, pelo que se pôde constatar, a sobrevivência do mito.
Alguns têm consciência de que ele foi ideologicamente esvaziado -como se tivesse encarado uma reciclagem-, e que hoje se identifica com certa atitude.
Como diz Bruno Mendizábal, 19: "A figura do Che se perverteu um pouco, usam só como um símbolo de rebeldia". Roberto de la Peña, 19, completa: "Usa-se muito o "logo" do Che como símbolo de que não estamos de acordo com que a autoridade nos seja imposta".
"Também tem a ver com como se identificam os garotos de agora, uma geração brava, cheia de ansiedade, que procura a que se agarrar. Falta um ideal de seu próprio tempo", arrisca Tania Álvarez, 19. Miguelina Joaquín, 20, faz eco: "Nesta época, carecemos de heróis, idealistas, revolucionários. Tenta-se muitas vezes enaltecer figuras do passado, que expressaram suas idéias e lutaram por elas".
Tampouco passa despercebido a esses jovens que, em muitos casos, se trata de fazer onda. "É um jeito de "pegar bem", porque o Che nunca falha", diz, em tom de crítica, Sara Hamud, 19.
Bruno "culpa" em parte a foto de Korda: "Seu "look" ajuda, essa foto que está por todo lado, que teve uma mensagem e que, depois, se tornou independente; se fizessem uma camiseta com outra imagem, ninguém saberia quem era".
Apesar de não demonstrarem conhecimento preciso do ideário de Che e de o acharem meio anacrônico no pouco que conhecem de seus métodos, alguns lembram as "boas intenções". "Ele era guerrilheiro porque na época era necessária uma guerrilha para acabar com Batista, o ditador de Cuba. Já não precisa, mas os ideais deveriam ser levados em conta. Batista tinha Cuba inteira vendida aos EUA. Eu vejo isso como a globalização hoje", compara Emiliano Corona, 17.
Para Victoria Bedolla, 20, "se houvesse uma luta hoje, não poderia ser armada, pois estaria predestinada ao fracasso". E Miguelina, que morou em Cuba, resume: "É uma pessoa digna de admiração e respeito, com idéias revolucionárias que tinham muito a ver com a sua época. Hoje está muito comercializado. Boina, camiseta... Nem sabem das suas idéias. Ele morreria de novo se visse".


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