São Paulo, segunda, 10 de maio de 1999

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free way
A cultura da fama

GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha

Que alguém queira saber o que uma artista de novela pensa sobre a crise econômica ou o problema educacional do Brasil é algo incompreensível.
Que todos atribuam peso a essas opiniões, já vira ridículo. É tudo parte do grande circo em que vivemos, no qual quem está sob os holofotes públicos vira imediatamente proprietário de sabedoria universal e, portanto, digno de ser questionado sobre toda e qualquer área do conhecimento -ou ignorância- humano.
Não é difícil de entender o fenômeno. Uma sociedade massificada, de valores diluídos e com seu humanismo esmagado por uma estrutura que a mantém amesquinhada, é um conjunto de almas perdidas, procurando qualquer sentido que seja. Alguns acham seu Santo Graal em religiões alternativas, outros, em comida macrobiótica, outros, nos animais de estimação, e outros, em bonequinhas que representem o ideal de uma vida glamourosa só disponível aos Joões e Marias nas páginas de revista de fofoca e em programas de televisão. Como as religiões alternativas requerem muito esforço, comida macrobiótica é uma papa, e cachorro faz xixi na sala, cada vez mais se migra para o culto da celebridade. À medida que as pessoas projetam suas aspirações e sonhos em seus ídolos, passam não só a admirar sua obra, mas sua vida.
Querem levar vicariamente a vida de seus ídolos. Em casos extremos, tornam-se clones de seus ídolos, usando as mesmas roupas, os mesmos trejeitos e as mesmas idéias. Em casos menos psicóticos, há pelo menos o interesse de saber o que faz e o que pensa seu ídolo, até para poder situar a idolatria mais precisamente.
Assisto, entre apoplético e desgostoso, o fenômeno se repetir com este que vos escreve. Não há mês que passe sem que a minha caixa de correio receba algum convite pra palestra, programa de TV ou escrever um livro; sem que algum leitor me escreva perguntando o que deveria fazer com o seu casamento, sua carreira ou em relação aos pais ou filhos. Seria engraçado, não fosse trágico.
Não sou especialista em nada, não tenho credenciais para falar de assunto nenhum. Para qualquer área que se possa imaginar, há umas 20 pessoas mais capacitadas do que eu para palestrar ou escrever um livro ou aparecer na TV. Sobre as mensagens de leitores, então, nem se fala: mesmo que tivesse a presciência de saber o que é melhor pra vida de quem me escreve, eu me furtaria a comentar, pois é uma responsabilidade muito grande.
Mas por que me chamam? Não chamam a mim, mas à grife. Chamam o cara da Folha porque estar na Folha parece ser sinal de poderes sobre-humanos.
Imbuem a mim -e, imagino, a demais pessoas com mais experiência, visibilidade e sabedoria que este escriba- uma superioridade automática por "estar na mídia". E quem está na mídia deve ser vaca sagrada -ou pelo menos terneiro, no meu caso.
O fenômeno é mundial, talvez piorado no Brasil por nossa escassa produção acadêmica, em que as lacunas deixadas por especialistas e "scholars" são preenchidas por jornalistas e demais figuras públicas dispostas a aparecer e opinar até sobre o problema da bauxita refratária.
Sorte é que as atrizes e "opinionetes' no Brasil pelo menos são um pouco mais bonitinhas que as daqui. E que, por enquanto, ainda não são levadas tão a sério.


Gustavo Ioschpe, 22, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política na University of Pennsylvania, EUA, e-mail: desembucha@cyberdude.com




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