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free way
A cultura da fama
GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha
Que alguém queira saber o que
uma artista de novela pensa sobre a crise econômica ou o problema educacional do Brasil é algo incompreensível.
Que todos atribuam peso a essas opiniões, já vira ridículo. É
tudo parte do grande circo em
que vivemos, no qual quem está
sob os holofotes públicos vira
imediatamente proprietário de
sabedoria universal e, portanto,
digno de ser questionado sobre
toda e qualquer área do conhecimento -ou ignorância- humano.
Não é difícil de entender o fenômeno. Uma sociedade massificada, de valores diluídos e com
seu humanismo esmagado por
uma estrutura que a mantém
amesquinhada, é um conjunto
de almas perdidas, procurando
qualquer sentido que seja. Alguns acham seu Santo Graal em
religiões alternativas, outros, em
comida macrobiótica, outros,
nos animais de estimação, e outros, em bonequinhas que representem o ideal de uma vida glamourosa só disponível aos Joões
e Marias nas páginas de revista
de fofoca e em programas de televisão. Como as religiões alternativas requerem muito esforço,
comida macrobiótica é uma papa, e cachorro faz xixi na sala,
cada vez mais se migra para o
culto da celebridade. À medida
que as pessoas projetam suas aspirações e sonhos em seus ídolos, passam não só a admirar sua obra, mas sua
vida.
Querem levar vicariamente a vida de seus
ídolos. Em casos extremos, tornam-se clones
de seus ídolos, usando
as mesmas roupas, os
mesmos trejeitos e as
mesmas idéias. Em casos menos psicóticos,
há pelo menos o interesse
de saber o que faz e o que pensa
seu ídolo, até para poder situar a
idolatria mais precisamente.
Assisto, entre apoplético e desgostoso, o fenômeno se repetir
com este que vos escreve. Não há
mês que passe sem que a minha
caixa de correio receba algum
convite pra palestra, programa
de TV ou escrever um livro; sem
que algum leitor me escreva perguntando o que deveria fazer
com o seu casamento, sua carreira ou em relação aos pais ou
filhos. Seria engraçado, não fosse trágico.
Não sou especialista em nada,
não tenho credenciais para falar
de assunto nenhum. Para qualquer área que se possa imaginar,
há umas 20 pessoas mais capacitadas do que eu para palestrar
ou escrever um livro ou aparecer
na TV. Sobre as mensagens de
leitores, então, nem se fala: mesmo que tivesse a presciência de
saber o que é melhor pra vida de
quem me escreve, eu me furtaria
a comentar, pois é uma responsabilidade muito grande.
Mas por que me chamam? Não
chamam a
mim, mas à grife. Chamam o cara da Folha porque estar na Folha parece ser sinal de poderes
sobre-humanos.
Imbuem a mim -e, imagino,
a demais pessoas com mais experiência, visibilidade e sabedoria que este escriba- uma superioridade automática por "estar
na mídia". E quem está na mídia
deve ser vaca sagrada -ou pelo
menos terneiro, no meu caso.
O fenômeno é mundial, talvez
piorado no Brasil por nossa escassa produção acadêmica, em
que as lacunas deixadas por especialistas e "scholars" são
preenchidas por jornalistas e demais figuras públicas dispostas a
aparecer e opinar até sobre o
problema da bauxita refratária.
Sorte é que as atrizes e "opinionetes' no Brasil pelo menos são
um pouco mais bonitinhas que
as daqui. E que, por enquanto,
ainda não são levadas tão a sério.
Gustavo Ioschpe, 22, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política na University of Pennsylvania, EUA,
e-mail: desembucha@cyberdude.com
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