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COTIDIANO
A terceira margem do rio
No Jardim Pantanal, meninas sofrem para cuidar do cabelo e meninos "blindam" videogames, mas maior medo é de doença
DÉBORA YURI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Jogada na cama: foi assim que Eliene de Alcântara, 15, começou
suas férias de verão.
Sua casa, um imóvel de um
dormitório que divide com o
pai, a mãe e quatro irmãos, ficou dez dias inundada em dezembro, com a água numa altura de 80 centímetros.
"A gente vivia em cima da cama, sem poder sair na rua. A TV
molhou e pifou, não tinha nada
pra fazer", conta ela, moradora
do Jardim Pantanal, zona leste
de São Paulo, a região da cidade
mais castigada pelas chuvas.
Para se comunicar com as
primas, que vivem na mesma
rua, Eliene se pendurava na janela. "A gente se falava por gritos, eu de um lado da rua, elas
do outro. Nem pude ir à escola
saber se passei de ano."
O verão avançou, e o cenário
não muda. "Ontem já tava
cheio de água aqui de novo", dizia Arielle Maria Ribeiro, 13, na
quarta passada, colada a seu celular. "Fico sempre perto dele.
Minhas amigas dormiram com
o celular ao lado da cama.
Quando acordaram, a água tinha estragado tudo."
Ela se acostumou a passar as
férias em casa. "Antes, a gente
ia na pizzaria, nadava no CEU
[Centro Educacional Unificado], ia na LAN house. Mas não
dá pra andar nessa água, cheia
de ratazanas boiando. Meu
maior medo é pegar doença."
Na várzea do rio Tietê, o Jd.
Pantanal sofre com as enchentes desde o começo de dezembro, quando a área ficou alagada por dez dias seguidos. Em
pane, a estação de tratamento
de esgoto local despejou dejetos nas ruas e nas vielas.
Ilhados, os jovens combatem
o ócio pescando nos piscinões
de lodo preto que se formam nas ruas. "Olha, peguei três peixes no outro dia. Cuido deles e fico vendo TV", diz Juliana Alcântara, 17, mostrando seus bichos de estimação, acomodados em potes de sorvete.
Para Kelvin Gonçalves, 13, em primeiro lugar vem o melhor amigo do homem; em seguida, seu videogame.
"Fiz uma casinha pro meu cachorro, com cimento e uma madeira. Depois, peguei meu Playstation e coloquei na mesa da cozinha, que é a mais alta."
Preocupação constante
Maísa Guedes, 14, não dorme direito desde a primeira cheia. "De dia, minha avó sai e fica ligando, preocupada se aqui tá chovendo. À noite, tenho que ficar esperta", diz ela.
"Pelo menos aqui não morreu gente", emenda uma vizinha, citando as mortes que a chuva provocou em Angra dos Reis (RJ), São Luiz do Paraitinga (SP) e Cunha (SP).
Com a casa cheia e a água da caixa contaminada, Aline Valencio Gomes, 16, ficou dias a pão com mortadela e leite, sem tomar banho, lavando o cabelo na banheira de plástico ("Que é alta") da irmã bebê.
"Dava pena dos meus pais, que tinham que ir trabalhar nesse estado. Perdi o celular, dois sapatos, livros escolares, bichos de pelúcia. Mas o pior é a falta de higiene."
A dez metros do portão de Aline, a água acumulada na rua impede a passagem de carros; na calçada, uma pilha de geladeiras e de TVs detonadas.
O cheiro de esgoto impregna cada canto do bairro, e o céu começa a ficar cinza. Vai chover, mais uma vez.
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