São Paulo, segunda, 14 de julho de 1997.



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Free way
Marte é deles, mas a Sharon é nossa

GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha

Desde a cruzada de pernas da Sharon Stone que eu não presenciava, assim tão de perto e com todo o conforto, um acontecimento histórico, um divisor de águas na história da humanidade.
A chegada à Marte de algo feito pelo homem deve ter inundado quase toda a humanidade de um orgulho não visto há muito tempo.
Eu, aqui, confesso ter ficado embasbacado. Conquistar o Planeta Vermelho é, além da reconfortante perspectiva de fazer com que todos os malas que dizem terem sido sequestrados por marcianos fiquem quietos, um triunfo incrível, uma vitória incontestável da espécie humana. Ou será que não?
Meu entusiasmo começou a ruir quando me dei conta da data: 4 de julho, Dia da Independência americana. Quer dizer, os gringos mandaram uma sonda pro espaço há oito meses e calcularam pra que ela aterrissasse exatamente na sua data nacional, como um presente ao país, e não ao planeta. Ou seja, uma humilhação a todos nós que não fazemos parte dessa nação que tenta ser monopolista -e já quase é- no controle de tudo o que dá certo no planeta (como se não bastasse a Sharon Stone).
Quando os americanos conquistaram a Lua, em 1969, imagino que ainda houvesse uma certa simpatia pela causa, já que se tratava da vitória dos Estados Unidos sobre o Império do Mal (vulgo URSS) na corrida espacial. Hoje, nem isso.
Os americanos estão sozinhos na dianteira. Tão deslumbrados estão consigo mesmos, que nem se preocupam em passar uma imagem de membros da aldeia global. Até o nome da sonda -Pathfinder- foi mudado na hora em que se viu que a missão estava dando certo.
Saiu o nome do carro japonês, e entrou na roda o do americano Carl Sagan, e fica no ar a impressão de que -além de uma simples e abrupta homenagem ao grande astrônomo recém-falecido- isso foi uma manobra para tirar dos japoneses qualquer ínfima parcela de mérito, já que o nome só era mantido enquanto ainda havia alguma possibilidade de insucesso.
Meu ânimo desabou mesmo quando ficou óbvio que não era só uma vitória americana: era o triunfo final da máquina. A sonda que pousou em Marte é tecnologia pura.
Desde os fabulosos air bags, que amorteceram o impacto, até o carrinho-robô, do tamanho de um microondas, passando pelas paredes da cápsula com painéis para energia solar, é tudo informatizado, meticuloso. Nem sombra da imperfeição humana. Aí você pode estar dizendo que "ah, mas a inteligência por trás daquilo tudo era humana". Talvez.
Depois que o Deep Blue ganhou do Kasparov no xadrez (até então, uma das últimas salvaguardas da nossa espécie), eu já não duvido de mais nada. E, mesmo que tenha sido a inteligência humana -aliás, americana- a bolar tudo aquilo, quem chegou lá (corajoso, empreendedor, arrojado) não foi um homem, mas, sim, um robô -e ainda mísero como um forno de microondas.
Não é recalque de gente avessa à tecnologia (escrevo num computador, quando ele está disposto a funcionar), mas, sim, uma conclusão óbvia: em um dos maiores acontecimentos dos últimos anos, fomos representados por um monte de parafusos e transistores. O que já é razão suficiente para minar a alegria desvairada. Não tinha ninguém lá pra ouvir o que a primeira máquina disse quando pousou em solo vermelho, mas dizem que nas transmissões de rádio do planeta todo dava pra se ouvir um "É um pequeno passo para um microondas, mas um grande passo para a tecnologia", vindo lá dos confins do espaço. O que ainda garante o meu sono é que, em termos de Sharon Stone, os ventos estão soprando do lado dos humanos.
Pelo menos, por enquanto.


Gustavo Ioschpe, 20, é escritor e estuda administração na Wharton School of University of Pennsylvania, EUA; está em férias no Brasil



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