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Free way
Marte é deles, mas a Sharon é nossa
GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha
Desde a cruzada de pernas da
Sharon Stone que eu não presenciava, assim tão de perto e com todo o conforto, um acontecimento
histórico, um divisor de águas na
história da humanidade.
A chegada à Marte de algo feito
pelo homem deve ter inundado
quase toda a humanidade de um
orgulho não visto há muito tempo.
Eu, aqui, confesso ter ficado embasbacado. Conquistar o Planeta
Vermelho é, além da reconfortante perspectiva de fazer com que todos os malas que dizem terem sido
sequestrados por marcianos fiquem quietos, um triunfo incrível,
uma vitória incontestável da espécie humana. Ou será que não?
Meu entusiasmo começou a ruir
quando me dei conta da data: 4 de
julho, Dia da Independência americana. Quer dizer, os gringos
mandaram uma sonda pro espaço
há oito meses e calcularam pra que
ela aterrissasse exatamente na sua
data nacional, como um presente
ao país, e não ao planeta. Ou seja,
uma humilhação a todos nós que
não fazemos parte dessa nação que
tenta ser monopolista -e já quase
é- no controle de tudo o que dá
certo no planeta (como se não bastasse a Sharon Stone).
Quando os americanos conquistaram a Lua, em 1969, imagino que
ainda houvesse uma certa simpatia
pela causa, já que se tratava da vitória dos Estados Unidos sobre o
Império do Mal (vulgo URSS) na
corrida espacial. Hoje, nem isso.
Os americanos estão sozinhos na
dianteira. Tão deslumbrados estão
consigo mesmos, que nem se
preocupam em passar uma imagem de membros da aldeia global.
Até o nome da sonda -Pathfinder- foi mudado na hora em que
se viu que a missão estava dando
certo.
Saiu o nome do carro japonês, e
entrou na roda o do americano
Carl Sagan, e fica no ar a impressão
de que -além de uma simples e
abrupta homenagem ao grande astrônomo recém-falecido- isso foi
uma manobra para tirar dos japoneses qualquer ínfima parcela de
mérito, já que o nome só era mantido enquanto ainda havia alguma
possibilidade de insucesso.
Meu ânimo desabou mesmo
quando ficou óbvio que não era só
uma vitória americana: era o
triunfo final da máquina. A sonda
que pousou em Marte é tecnologia
pura.
Desde os fabulosos air bags, que
amorteceram o impacto, até o carrinho-robô, do tamanho de um
microondas, passando pelas paredes da cápsula com painéis para
energia solar, é tudo informatizado, meticuloso. Nem sombra da
imperfeição humana. Aí você pode
estar dizendo que "ah, mas a inteligência por trás daquilo tudo era
humana". Talvez.
Depois que o Deep Blue ganhou
do Kasparov no xadrez (até então,
uma das últimas salvaguardas da
nossa espécie), eu já não duvido de
mais nada. E, mesmo que tenha sido a inteligência humana -aliás,
americana- a bolar tudo aquilo,
quem chegou lá (corajoso, empreendedor, arrojado) não foi um
homem, mas, sim, um robô -e
ainda mísero como um forno de
microondas.
Não é recalque de gente avessa à
tecnologia (escrevo num computador, quando ele está disposto a
funcionar), mas, sim, uma conclusão óbvia: em um dos maiores
acontecimentos dos últimos anos,
fomos representados por um
monte de parafusos e transistores.
O que já é razão suficiente para minar a alegria desvairada. Não tinha
ninguém lá pra ouvir o que a primeira máquina disse quando pousou em solo vermelho, mas dizem
que nas transmissões de rádio do
planeta todo dava pra se ouvir um
"É um pequeno passo para um
microondas, mas um grande passo
para a tecnologia", vindo lá dos
confins do espaço. O que ainda garante o meu sono é que, em termos
de Sharon Stone, os ventos estão
soprando do lado dos humanos.
Pelo menos, por enquanto.
Gustavo Ioschpe, 20, é escritor e estuda administração na Wharton School of University of
Pennsylvania, EUA; está em férias no Brasil
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