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Sombras no Carnaval de uma deusa
ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha
Imagine um Carnaval sem
praia, blocos, trios elétricos. Cinco dias dominados por angústia e
sombras. Vozes que mal se ouvem, um ruído ou outro, canções
vagamente reconhecíveis.
Sob o som dos atabaques, fica
difícil acreditar nisso. Mas esta dimensão de estranhamento e desvios existe, está registrada em CD.
Dura muito mais que o Carnaval.
Arrasta-se, como a vida, pelas 24
horas dos 365 dias do ano (366
nos bissextos).
Esses domínios escuros têm
uma diva, uma sacerdotisa extracool. Ela é sueca, cristais de gelo
correm em suas veias. O nome é
incomum como a música: Stina
Nordenstam.
Tem como fãs declarados gente
tão diversa como o compositor
new age Vangelis (com quem gravou um álbum) e Bret Anderson,
da banda britânica Suede.
Stina praticamente não dá entrevistas nem toca ao vivo. Um de
seus ídolos é o pianista canadense
Glenn Gould (1932-1982), intérprete alucinado de Bach que também desprezava as platéias, em
benefício da perfeição dos estúdios.
Sabe-se lá por que, apesar da
formação clássico-jazzística, ela
gravou um disco com 12 faixas,
das quais 11 são covers de canções
populares. Algumas conhecidas,
como "Sailing" (famosa na voz de
Rod Stewart), "Purple Rain" (de
Prince) e "People Are Strange"
(Doors). Muitas obscuridades.
Tudo absolutamente perturbador.
O disco foi feito em condições
100% low-tech, tem som de fita
cassete regravada pela centésima
vez. Os amplificadores parecem
estar com o fio terra desligado, e a
voz de Stina, muitas vezes, beira o
inaudível.
Mas esses são obstáculos condenados à desimportância, tal o
brilho de algumas faixas do álbum, chamado, como a música
dos Doors, "People Are Strange".
Stina, também arranjadora, trabalha em etapas. Primeiro, estilhaça as músicas até reduzi-las a
quase nada. Depois, acrescenta
uma base instrumental que imprime novo significado à palavra
minimalismo. Impossível tirar
qualquer coisa, porque deixaria
de ser canção. Quase deixa de ser
música.
O que ela fez com "Purple Rain"
é um caso à parte. Uma espécie de
trip-hop branco, lento, pontuado
por cordas usadas com economia. A distância do original de
Prince é astronômica. A voz não
passa de um sussurro, por muito
pouco poderia ser chamada de...
silêncio.
"Jeannie with the Light Brown
Hair", a faixa mais pesada, com
guitarras que lembram os holandeses de Bettie Serveert, é nada
menos que uma obscura balada
do século 19 transposta para esta
perturbadora era digital. Rock
and roll puro.
"People Are Strange" tem só
voz, violão e flautas. Os vocais são
distantes e cheios de reverberação. Pelos padrões da chamada
indústria fonográfica, a qualidade
de gravação é tão baixa que não
serviria nem para fita demo. Mas
Stina Nordenstam não segue padrões. E por isso a mal gravada
"People Are Strange" virou faixa-título do CD.
Este, o quarto de Stina, é um CD
experimental e pretensioso. Teria
tudo para não passar de lixo afetado, mas felizmente seguiu caminho oposto. É um sussurro desesperado, trilha sonora de um
Carnaval impossível.
"Toda a vida humana está lá",
avisa o vocalista/visionário Ian
McCulloch sobre o novo disco do
Echo and the Bunnymen, "What
Are You Going to Do with Your
Life". Uma das músicas traz o seguinte verso: "It is the last time,
until the next time". Entenda
quem quiser.
É bom estar de volta.
²
Álvaro Pereira Júnior, 35, é editor-chefe do
"Fantástico" em São Paulo
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