São Paulo, segunda, 15 de fevereiro de 1999

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

escuta aqui
Sombras no Carnaval de uma deusa

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha

Imagine um Carnaval sem praia, blocos, trios elétricos. Cinco dias dominados por angústia e sombras. Vozes que mal se ouvem, um ruído ou outro, canções vagamente reconhecíveis.
Sob o som dos atabaques, fica difícil acreditar nisso. Mas esta dimensão de estranhamento e desvios existe, está registrada em CD. Dura muito mais que o Carnaval. Arrasta-se, como a vida, pelas 24 horas dos 365 dias do ano (366 nos bissextos).
Esses domínios escuros têm uma diva, uma sacerdotisa extracool. Ela é sueca, cristais de gelo correm em suas veias. O nome é incomum como a música: Stina Nordenstam.
Tem como fãs declarados gente tão diversa como o compositor new age Vangelis (com quem gravou um álbum) e Bret Anderson, da banda britânica Suede.
Stina praticamente não dá entrevistas nem toca ao vivo. Um de seus ídolos é o pianista canadense Glenn Gould (1932-1982), intérprete alucinado de Bach que também desprezava as platéias, em benefício da perfeição dos estúdios.
Sabe-se lá por que, apesar da formação clássico-jazzística, ela gravou um disco com 12 faixas, das quais 11 são covers de canções populares. Algumas conhecidas, como "Sailing" (famosa na voz de Rod Stewart), "Purple Rain" (de Prince) e "People Are Strange" (Doors). Muitas obscuridades. Tudo absolutamente perturbador.
O disco foi feito em condições 100% low-tech, tem som de fita cassete regravada pela centésima vez. Os amplificadores parecem estar com o fio terra desligado, e a voz de Stina, muitas vezes, beira o inaudível.
Mas esses são obstáculos condenados à desimportância, tal o brilho de algumas faixas do álbum, chamado, como a música dos Doors, "People Are Strange".
Stina, também arranjadora, trabalha em etapas. Primeiro, estilhaça as músicas até reduzi-las a quase nada. Depois, acrescenta uma base instrumental que imprime novo significado à palavra minimalismo. Impossível tirar qualquer coisa, porque deixaria de ser canção. Quase deixa de ser música.
O que ela fez com "Purple Rain" é um caso à parte. Uma espécie de trip-hop branco, lento, pontuado por cordas usadas com economia. A distância do original de Prince é astronômica. A voz não passa de um sussurro, por muito pouco poderia ser chamada de... silêncio.
"Jeannie with the Light Brown Hair", a faixa mais pesada, com guitarras que lembram os holandeses de Bettie Serveert, é nada menos que uma obscura balada do século 19 transposta para esta perturbadora era digital. Rock and roll puro.
"People Are Strange" tem só voz, violão e flautas. Os vocais são distantes e cheios de reverberação. Pelos padrões da chamada indústria fonográfica, a qualidade de gravação é tão baixa que não serviria nem para fita demo. Mas Stina Nordenstam não segue padrões. E por isso a mal gravada "People Are Strange" virou faixa-título do CD.
Este, o quarto de Stina, é um CD experimental e pretensioso. Teria tudo para não passar de lixo afetado, mas felizmente seguiu caminho oposto. É um sussurro desesperado, trilha sonora de um Carnaval impossível.

"Toda a vida humana está lá", avisa o vocalista/visionário Ian McCulloch sobre o novo disco do Echo and the Bunnymen, "What Are You Going to Do with Your Life". Uma das músicas traz o seguinte verso: "It is the last time, until the next time". Entenda quem quiser.
É bom estar de volta.
²


Álvaro Pereira Júnior, 35, é editor-chefe do "Fantástico" em São Paulo


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.