|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Free way
Se ainda sobrar algo
GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha
Talvez o pior efeito da atual
crise econômica seja a criação,
ou o fortalecimento, de um clima em que a discordância com
o que vem do oráculo de Brasília seja tratada como deserção e
em que o questionamento das
metas do governo seja visto como falta de patriotismo, quase
como o "Brasil: Ame-o ou Deixe-o", da época dos milicos.
Este governo tem promovido
algumas mudanças importantes no cenário nacional, mas
muitas delas passam despercebidas pelo grande público, acobertadas que ficam pela chamada corrente do
pensamento
único, que não
permite dissensões. Nos últimos meses, a
vida de aposentados e
pensionistas
foi severamente modificada pela legislação aprovada
em regime de urgência pelo
Congresso, quando o rolo compressor governista fez a choldra acreditar que a não-aprovação de tal medida, já rejeitada outras vezes, em tempos
mais amenos, equivaleria a um
sinal de fracasso do governo, o
qual causaria a perda de credibilidade (e quem ainda acredita
neles?) deste e levaria o país à
bancarrota.
Garfados os aposentados, salvou-se a pátria. Também tivemos no Banco Central um presidente que, pela primeira vez
na história, foi acusado por um
senador de não ser homem de
"reputação ilibada", pelas traquinagens que havia feito na
sua vida passada, de especulador.
Olhando-se mais pra trás, as
mudanças na surdina se acumulam. Quebrou-se o monopólio do petróleo, e daqui a
pouco a Petrobrás deve ser privatizada, assim como grande
parte do patrimônio público. E
pra quê?
Ora, para pagar o juro que fez
a dívida do governo explodir,
juro esse elevado às alturas pelo
próprio governo inflacionofóbico na sua luta-kamikaze pela
"estabilidade da moeda" (ah,
deve estar tão estável que não
chega ao bolso da população).
Quer dizer, liquidou-se o patrimônio do povo, e com o dinheiro da venda não se construiu uma escola ou hospital,
ou estrada.
A abertura deslumbrada da
economia ("Oi nóis aqui, Clinton!") causou a quebradeira de
diversas empresas nacionais ou
levou-as a ser vendidas, como
Metal Leve, Banco Econômico,
Embratel, Brastemp e muitas
outras.
E, ao mesmo tempo em que se
abria a porta de entrada, fechava-se a porta da saída: com o
real sobrevalorizado, ficou difícil para as indústrias brasileiras
exportar. Dez dólares só compravam R$ 12, quando deveriam valer, segundo vem determinando o mercado desde a
desvalorização, R$ 19, o que é
diferença suficiente pra que
qualquer comprador vá procurar outra praia.
Não sofreu só a
economia, claro: a kaiserização do país
varreu pra
baixo do tapete azul do
Senado qualquer tentativa de investigar os
desmandos do governo. Membros do primeiro escalão de
FHC foram acusados, em fita
gravada, de comprar votos para a reeleição do chefe, e nem
uma CPI se conseguiu fazer;
Collor foi "impichado" por menos.
Não se discutem aqui os méritos da política econômica do
governo e sua moral. Cada um
com a sua opinião. O que preocupa é o silêncio geral.
Parece que a população sofreu uma dose de anestesia, que
a impede de pedir que a sua liderança trabalhe para os brasileiros, e não para agradar a
meia dúzia de banqueiros e burocratas estrangeiros.
Enquanto todos ficam quietos, aposentados são garfados,
trabalhadores vão para a rua,
instaura-se uma recessão, e o
FMI volta. Agora anuncia-se
que a área social do orçamento
da nação vai sofrer cortes da
ordem de R$ 2 bilhões, atingindo adivinhe quem? O pessoal lá
de baixo, que tem menos e precisa de mais, que vai perder
programas de educação e saúde básica para que o país produza um superávit fiscal; ou seja, para que o governo arrecade
mais do que gasta, enquanto a
população precisa de cada centavo possível.
A persistir a afasia generalizada, só resta chulear para que o
governo resolva essa crise logo,
logo. Do jeito que a coisa anda,
periga não haver mais Brasil
quando a situação melhorar.
Gustavo Ioschpe, 22, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência
política na University of Pennsylvania, EUA,
e-mail:
desembucha@cyberdude.com
Texto Anterior: Não perca "Deuses e Monstros" Próximo Texto: Notas: Novos Talentos/Obesidade Índice
|