São Paulo, Segunda-feira, 15 de Março de 1999
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Free way

Se ainda sobrar algo

GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha

Talvez o pior efeito da atual crise econômica seja a criação, ou o fortalecimento, de um clima em que a discordância com o que vem do oráculo de Brasília seja tratada como deserção e em que o questionamento das metas do governo seja visto como falta de patriotismo, quase como o "Brasil: Ame-o ou Deixe-o", da época dos milicos.
Este governo tem promovido algumas mudanças importantes no cenário nacional, mas muitas delas passam despercebidas pelo grande público, acobertadas que ficam pela chamada corrente do pensamento único, que não permite dissensões. Nos últimos meses, a vida de aposentados e pensionistas foi severamente modificada pela legislação aprovada em regime de urgência pelo Congresso, quando o rolo compressor governista fez a choldra acreditar que a não-aprovação de tal medida, já rejeitada outras vezes, em tempos mais amenos, equivaleria a um sinal de fracasso do governo, o qual causaria a perda de credibilidade (e quem ainda acredita neles?) deste e levaria o país à bancarrota.
Garfados os aposentados, salvou-se a pátria. Também tivemos no Banco Central um presidente que, pela primeira vez na história, foi acusado por um senador de não ser homem de "reputação ilibada", pelas traquinagens que havia feito na sua vida passada, de especulador.
Olhando-se mais pra trás, as mudanças na surdina se acumulam. Quebrou-se o monopólio do petróleo, e daqui a pouco a Petrobrás deve ser privatizada, assim como grande parte do patrimônio público. E pra quê?
Ora, para pagar o juro que fez a dívida do governo explodir, juro esse elevado às alturas pelo próprio governo inflacionofóbico na sua luta-kamikaze pela "estabilidade da moeda" (ah, deve estar tão estável que não chega ao bolso da população). Quer dizer, liquidou-se o patrimônio do povo, e com o dinheiro da venda não se construiu uma escola ou hospital, ou estrada.
A abertura deslumbrada da economia ("Oi nóis aqui, Clinton!") causou a quebradeira de diversas empresas nacionais ou levou-as a ser vendidas, como Metal Leve, Banco Econômico, Embratel, Brastemp e muitas outras.
E, ao mesmo tempo em que se abria a porta de entrada, fechava-se a porta da saída: com o real sobrevalorizado, ficou difícil para as indústrias brasileiras exportar. Dez dólares só compravam R$ 12, quando deveriam valer, segundo vem determinando o mercado desde a desvalorização, R$ 19, o que é diferença suficiente pra que qualquer comprador vá procurar outra praia.
Não sofreu só a economia, claro: a kaiserização do país varreu pra baixo do tapete azul do Senado qualquer tentativa de investigar os desmandos do governo. Membros do primeiro escalão de FHC foram acusados, em fita gravada, de comprar votos para a reeleição do chefe, e nem uma CPI se conseguiu fazer; Collor foi "impichado" por menos.
Não se discutem aqui os méritos da política econômica do governo e sua moral. Cada um com a sua opinião. O que preocupa é o silêncio geral.
Parece que a população sofreu uma dose de anestesia, que a impede de pedir que a sua liderança trabalhe para os brasileiros, e não para agradar a meia dúzia de banqueiros e burocratas estrangeiros.
Enquanto todos ficam quietos, aposentados são garfados, trabalhadores vão para a rua, instaura-se uma recessão, e o FMI volta. Agora anuncia-se que a área social do orçamento da nação vai sofrer cortes da ordem de R$ 2 bilhões, atingindo adivinhe quem? O pessoal lá de baixo, que tem menos e precisa de mais, que vai perder programas de educação e saúde básica para que o país produza um superávit fiscal; ou seja, para que o governo arrecade mais do que gasta, enquanto a população precisa de cada centavo possível.
A persistir a afasia generalizada, só resta chulear para que o governo resolva essa crise logo, logo. Do jeito que a coisa anda, periga não haver mais Brasil quando a situação melhorar.


Gustavo Ioschpe, 22, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política na University of Pennsylvania, EUA, e-mail: desembucha@cyberdude.com


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