|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
análise
O general do exército de malucos
ANDRÉ BARCINSKI
especial para a Folha
É muito difícil explicar para
qualquer um com menos de 30
anos a importância de Raul Seixas. Ele morreu há uma década;
suas músicas não são tocadas
nas rádios, e não há clipes na
MTV. Apesar disso, Raul sobrevive, na memória e no coração
de uma massa silenciosa de fãs.
São milhões de admiradores, todos órfãos do Maluco Beleza.
Podem acreditar: Raul foi o
nome mais importante da história do rock brasileiro. No início
dos anos 70, época em que o
Brasil entrava numa ditadura feroz, Raul foi uma válvula de escape, um porta-voz de quem
não tinha voz alguma, ou melhor, de quem não podia expressá-la. Enquanto Médici, Geisel e
os outros linhas-duras pregavam ordem e progresso, respeito
à família, tradição e propriedade, Raul pregava a Sociedade Alternativa, onde valia tudo, onde
"tudo era da lei". "Se eu quero, e
você quer/ tomar banho de chapéu/ ou esperar Papai Noel/ ou
discutir Garlos Gardel/ Então
vá!" Se você fosse um adolescente em 1973, quem escolheria? Os
milicos ou o maluco?
Os mais bacanas escolheram,
claro, o maluco. E assim Raul virou ídolo. Chamá-lo de "ídolo
do rock", aliás, é errado: Raul foi
ídolo popular, e ponto. Dos cafundós do Norte ao extremo sul
do Chuí, todo mundo amava
Raul. Forrozeiros, sambistas,
metaleiros, místicos, engravatados, políticos, camelôs, todo
mundo fez parte do exército de
malucos. Até as crianças
-quem não se lembra do Carimbador Maluco, personagem
que ele criou para o musical infantil "Plunct Plact Zum"? Lembro-me de ouvir, espantado, o
veteraníssimo Nelson Sargento,
lendário sambista da Mangueira, dizendo que chorou quando
Raul morreu.
Raul era anarquista e nunca se
candidatou a presidente, senão
ganharia de lavada. Quem não
simpatizava com ele? Afinal, toda rua do Brasil tem seu maluco,
seu personagem folclórico,
aquele sujeito meio esquisitão e
avoado, com quem todo mundo
simpatiza. Raul era esse sujeito.
E a música? Da melhor qualidade. Raul, é bom lembrar, não
fez só rock: fez bolero, forró,
country, baladas românticas,
música brega (a clássica "Tu És o
MDC da Minha Vida") e até
punk de protesto, como a furiosa "Aluga-se", uma pedrada irônica que cairia como uma luva
no repertório de um Ratos de
Porão: "A solução pro nosso povo eu vou dar/ negócio bom assim ninguém nunca viu/ Tá tudo
pronto, aqui, é só vir pegar/ a solução é alugar o Brasil!".
Como todo gênio, Raul era
contraditório: numa hora conclamava a massa a unir-se à Sociedade Alternativa, depois dizia
que cada um deveria encontrar
seu próprio caminho; fazia papel
de maluco, mas de louco não tinha nada. O negócio era não ter
"aquela velha opinião formada
sobre tudo", como cantou na
linda "Metamorfose Ambulante". No meio de tanta contradição, uma coisa nunca mudou: a
verdade de suas letras e a beleza
simples de suas canções, das
quais a mais bela periga ser
"S.O.S.": "Ô seu moço do disco
voador/ me leve com você/ pra
onde você for/ ô seu moço/ mas
não me deixe aqui/ enquanto eu
sei que tem/ tanta estrela por aí".
Ninguém, no pop brasileiro,
cantou sobre solidão e melancolia com tanta plangência e beleza.
Os discos de Raul estão por aí.
Mergulhe fundo e, como diria o
Carimbador Maluco, "Boa viagem, até outra vez".
André Barcinski, 31, é diretor de redação
da revista "TRIP"
Texto Anterior: Dez anos após a morte, o Maluco Beleza conquista uma legião de jovens fãs apaixonados Próximo Texto: Frases Índice
|