São Paulo, Segunda-feira, 16 de Agosto de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

análise
O general do exército de malucos

ANDRÉ BARCINSKI
especial para a Folha

É muito difícil explicar para qualquer um com menos de 30 anos a importância de Raul Seixas. Ele morreu há uma década; suas músicas não são tocadas nas rádios, e não há clipes na MTV. Apesar disso, Raul sobrevive, na memória e no coração de uma massa silenciosa de fãs. São milhões de admiradores, todos órfãos do Maluco Beleza.
Podem acreditar: Raul foi o nome mais importante da história do rock brasileiro. No início dos anos 70, época em que o Brasil entrava numa ditadura feroz, Raul foi uma válvula de escape, um porta-voz de quem não tinha voz alguma, ou melhor, de quem não podia expressá-la. Enquanto Médici, Geisel e os outros linhas-duras pregavam ordem e progresso, respeito à família, tradição e propriedade, Raul pregava a Sociedade Alternativa, onde valia tudo, onde "tudo era da lei". "Se eu quero, e você quer/ tomar banho de chapéu/ ou esperar Papai Noel/ ou discutir Garlos Gardel/ Então vá!" Se você fosse um adolescente em 1973, quem escolheria? Os milicos ou o maluco?
Os mais bacanas escolheram, claro, o maluco. E assim Raul virou ídolo. Chamá-lo de "ídolo do rock", aliás, é errado: Raul foi ídolo popular, e ponto. Dos cafundós do Norte ao extremo sul do Chuí, todo mundo amava Raul. Forrozeiros, sambistas, metaleiros, místicos, engravatados, políticos, camelôs, todo mundo fez parte do exército de malucos. Até as crianças -quem não se lembra do Carimbador Maluco, personagem que ele criou para o musical infantil "Plunct Plact Zum"? Lembro-me de ouvir, espantado, o veteraníssimo Nelson Sargento, lendário sambista da Mangueira, dizendo que chorou quando Raul morreu.
Raul era anarquista e nunca se candidatou a presidente, senão ganharia de lavada. Quem não simpatizava com ele? Afinal, toda rua do Brasil tem seu maluco, seu personagem folclórico, aquele sujeito meio esquisitão e avoado, com quem todo mundo simpatiza. Raul era esse sujeito.
E a música? Da melhor qualidade. Raul, é bom lembrar, não fez só rock: fez bolero, forró, country, baladas românticas, música brega (a clássica "Tu És o MDC da Minha Vida") e até punk de protesto, como a furiosa "Aluga-se", uma pedrada irônica que cairia como uma luva no repertório de um Ratos de Porão: "A solução pro nosso povo eu vou dar/ negócio bom assim ninguém nunca viu/ Tá tudo pronto, aqui, é só vir pegar/ a solução é alugar o Brasil!".
Como todo gênio, Raul era contraditório: numa hora conclamava a massa a unir-se à Sociedade Alternativa, depois dizia que cada um deveria encontrar seu próprio caminho; fazia papel de maluco, mas de louco não tinha nada. O negócio era não ter "aquela velha opinião formada sobre tudo", como cantou na linda "Metamorfose Ambulante". No meio de tanta contradição, uma coisa nunca mudou: a verdade de suas letras e a beleza simples de suas canções, das quais a mais bela periga ser "S.O.S.": "Ô seu moço do disco voador/ me leve com você/ pra onde você for/ ô seu moço/ mas não me deixe aqui/ enquanto eu sei que tem/ tanta estrela por aí".
Ninguém, no pop brasileiro, cantou sobre solidão e melancolia com tanta plangência e beleza.
Os discos de Raul estão por aí. Mergulhe fundo e, como diria o Carimbador Maluco, "Boa viagem, até outra vez".


André Barcinski, 31, é diretor de redação da revista "TRIP"


Texto Anterior: Dez anos após a morte, o Maluco Beleza conquista uma legião de jovens fãs apaixonados
Próximo Texto: Frases
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.