São Paulo, Segunda-feira, 19 de Abril de 1999
Próximo Texto | Índice

Garota prepara livro recheado de entrevistas com viciados e ex-viciados em crack
Garota investiga o mundo do crack

Lalo de Almeida/Folha Imagem
Paloma Klysis, 18, está escrevendo livro sobre crack, que traz entrevistas com viciados e ex-viciados e discute prevenção e tratamento de dependentes


BELL KRANZ
Editora do Folhateen

"Se todo mundo fizesse alguma coisa, o mundo ia melhorar." Essa parece mais uma frase da série ladainha de quem se diz cheio de disposição para ajudar a melhorar o mundo. Apenas parece porque a autora da frase, a estudante Paloma Klisys, 18, foi muito além do lamento, colocou a mão na massa .
Com seu gravadorzinho, a cara e a coragem, saiu para a rua determinada a desvendar o mundo do crack. Ela viu que essa praga, a segunda droga preferida por estudantes de São Paulo (leia texto abaixo), estava detonando alguns dos seus amigos. "E eu sempre lia no jornal que o crack era uma droga de população de rua. Quer dizer, estavam falando uma coisa, e eu estava vendo outra", diz ela.
Paloma entrevistou dependentes e ex-dependentes de crack, de 12 a 26 anos, gente de rua e de classe média. Entrevistou também profissionais da área, como uma delegada e um psiquiatra, e ainda o seu ídolo, Rita Lee. Agora -atenção, editoras-, ela prepara o material para lançar um livro. O objetivo é discutir da prevenção, mas não do "jeito careta", à recuperação. Leia o que ela conta abaixo.
Folha - De onde surgiu a idéia de sair entrevistando craqueiros?
Paloma -
Meus amigos começaram a usar. De maconha passaram a cheirar cocaína, depois fumar mesclado e depois crack. Até um amigo meu, de 19 anos, com muita grana, acabou indo preso. Ele fumava crack, fugia de casa e depois voltava. Aí a família o mandou para a Bahia, como se lá não tivesse droga. Ele voltou, e botaram ele para trabalhar num bar onde todos os frequentadores eram amigos dele. Consumiam drogas e bebiam também, convidavam o cara pra balada, e ele caiu no crack de novo. Estava na nóia, foi pedir dinheiro para um menino na porta da escola, o cara não deu, ele começou a espancar o cara, bateu, bateu, a polícia chegou e levou para a delegacia. O cara tem grana, o pai tem loja de carro, locadora, estacionamento, ônibus. E há vários outros casos. E eu sempre lia no jornal que o crack era uma droga de população de rua. Eles fazem um sensacionalismo muito grande em relação a isso. Falam que o cara matou a família por causa de pedra, mas não falam o outro lado. Que o cara está na rua, que não tem perspectiva, isso não é falado. Eu quis descobrir por que se tratava o crack daquele jeito e como é que era o mundinho do crack.
Folha - E o que você fez?
Paloma -
Fui atrás de meninos de rua. Uma vez fui até o Shopping Paulista e vi uma galerinha de meninos de rua carregando um pote com arroz. Conversei com eles e combinei de voltar no dia seguinte para encontrar uma garota que fumava pedra no casarão abandonado onde eles moram. A menina não estava, mas havia outra com cara de quem fumava. Comecei a conversar com ela e convidei ela para ir comigo no bar. Ela não queria porque tinha medo do cara com quem ela estava, estava grávida de dois meses, mas acabou indo. Entrei com a menina de rua na lanchonete, todo mundo estranhou. Terminei a entrevista, dei R$ 3 pra ela, um beijo no rosto dela e fiquei muito feliz.
Folha - Feliz por quê?
Paloma -
Feliz porque ela me contou a história dela, por estar fazendo a minha primeira entrevista, por ter sido legal fazer, por eu ter pago um lanche para ela, ter a manha de ter saído da minha casa, sentado com uma menina de rua e ter trocado um papo com ela (quase ninguém que eu conheço ia fazer isso), e ela me respeitar, e eu respeitar ela e ter dado um beijo nela. Legal para caramba.
Folha - E a partir daí você desatou a entrevistar?
Paloma -
Comecei e não parei mais. Mesmo que a pessoa usasse outras drogas, eu puxava para o lado do crack porque o crack é pior. Não existe usuário de crack, o cara fuma uma vez, tem uma puta sensação, que dura cinco, dez minutos, e aí vem a nóia. E depois ele quer fumar mais para repetir aquela sensação da primeira vez, que ele nunca vai ter de novo, e aí vai virando um negócio compulsivo. E, por mais que ele saiba que está se destruindo, não consegue parar porque já precisa da droga. Quem usa crack não é usuário, acaba ficando viciado. Eu parei de fazer as entrevistas porque ia ficar cansativo, as histórias são muito parecidas. Eles buscam o crack por fuga, ou por embalo de amigos, ou por não ter perspectiva, é tudo o que envolve as drogas.
Folha - Você queria experimentar quando foi pesquisar a droga?
Paloma -
Eu não sei ainda. Antes das entrevistas, eu nunca pensei não vou experimentar, mas sempre fui contra. Talvez eu até quisesse experimentar mesmo, mas hoje eu não quero mesmo.
Folha - E não experimentou?
Paloma -
Crack não, nem cocaína. Fazer esse trabalho fez com que eu não tivesse vontade.
Folha - Qual foi a história mais chocante que você encontrou?
Paloma -
De um casal de rua que guardava carro, um pouco mais velho. Ele já deu facada nela por causa de pedra, ela já teve um aborto, estava grávida de novo, eu até chorei nesse dia.
Folha - Há diferença entre os meninos de classe média e os de rua?
Paloma -
Na hora de usar a droga, não há diferença de classe. Mesmo o cara de classe média pode não ter perspectiva, pode ter uma desestrutura familiar que pira a cabeça. Quando começa a fumar pedra, o cara deixa de ser de classe média, ele começa a vender a casa dele, não está nem aí. Sai de casa, os pais fingem que não vêem ou vêem e não fazem nada. Tenho uma entrevista em que o cara fala que olhava para o espelho e não se via, ele via uma máscara, não era ele, era pele e osso, e os pais não percebiam.
Folha - E como começa?
Paloma -
Sempre do mesmo jeito. Inalante, maconha, depois coca, mesclado (crack com maconha) e chega na pedra. Às vezes, o pessoal passa do mesclado para o pitilho (nicotina com pedra); depois, se o cara não estiver no crack, pode ficar sossegado que ele vai.
Folha - Além das entrevistas, o que mais o livro vai trazer?
Paloma -
O objetivo é falar que prevenção vale a pena. Vamos investir, dar o sangue para fazer prevenção de droga. Prevenção de pai, na escola, envolver o governo, todo mundo. Eu também vou falar que quem está pode sair, mas vou mostrar como.
Folha - Como você acha que deve ser a prevenção?
Paloma -
Acho que a gente fala de droga de um jeito careta. É muito fácil você se sentar com o seu filho no sofá e falar que maconha e cocaína fazem mal. Se o seu filho tiver dúvida, senta e experimenta com ele porque informar não é formar. Prevenção não é só falar para o filho não fumar quando ele é adolescente e vai a uma festinha. Prevenção começa na infância, e não só prevenção de droga. A gente precisa de uma redefinição de valores, vivemos numa sociedade totalmente autodestrutiva. Como é que você vai falar para o cara não se destruir, se está todo mundo se destruindo o tempo todo?
Folha - Por que você acha que tem essa clareza que poucos têm na sua idade?
Paloma -
Não sei se poucos têm ou se não querem ter. Eu encanei nisso por causa dos meus amigos e por causa desse meu lance de querer ajudar, fazer alguma coisa para melhorar o mundo onde eu nasci.
Folha - Com o livro?
Paloma -
Eu quero que a playboyzada da minha escola compre e leia, que os maconheiros comprem e digam que não é um livro escrito por uma menina careta, que está escrevendo um monte de besteira sobre o assunto. Quero que os pais leiam, é de interesse de todos. O mais importante é falar que maconha não é porta de entrada, nada, que cigarro ou cerveja é muito mais porta de entrada, e sobre essas coisas todas de desestrutura familiar, é um conjunto de coisas.
- Você tem amigos bacanas assim como você?
Paloma -
Não. Eles são legais, mas meus amigos mesmo vivem na lua. Eles curtem fumar um o dia inteiro, sair para o forró, danceteria, encher a cara e voltar. Eles querem ir para a boate e namorar aquelas meninas de bamba de salto e jeans colorido.


Próximo Texto: Droga é a segunda mais consumida
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.