São Paulo, segunda, 21 de setembro de 1998

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free way
Esquilos daqui não gorjeiam como os de lá

GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha

Dia destes estava em Washington e, passando em frente ao Capitólio -o Congresso daqui- , notei uma massa de protestantes. Manifestou-se o meu lado "se hay gobierno, soy contra" e fui dar uma olhada no que bradavam.
Não era um grupo de desempregados pedindo a ajuda do tio Sam nem de empresários enchendo o saco do governo nem mesmo de mulheres mal-amadas pedindo que o presidente Clinton lhes desse, enfim, o tratamento que dispensa às estagiárias. Eram, isso, sim, umas 200 ou 300 pessoas empunhando bandeiras e cartazes, protestando contra a morte de um bispo guatemalteco ocorrida poucos dias atrás.
Não sabia muito bem os detalhes da história. Descobri depois -assim por alto, que a Guatemala tende a interessar tanto quanto horário eleitoral do Partido Verde- que o religioso era o símbolo da luta contra a tirania da república bananeira e que havia sido morto, de forma brutal (fizeram-no assistir ao Zagallo explicando seu sistema tático durante dias), por milícias ligadas ao governo e supostamente apoiadas pelos Estados Unidos. Algo a ver com a escola militar conhecida aqui como SAS, School of the Americas, a qual um protestante da escadaria do Congresso gritava, sobre as tamancas, ser na verdade a School of the Assassins.
Por mais que houvesse uma ligação entre o guatema lteco morto e os americanos -e pode ser que haja mesmo-, é incrível que um grupo de cidadãos, supostamente em pleno domínio de suas faculdades mentais e com uma ocupação na vida, tenha usado de seu tempo, energia e cordas vocais para aporrinhar seus representantes sobre assunto tão ínfimo. Esqueça Péricles: democracia é isso.
Veio-me à mente um livro pertinente que tinha lido, escrito por um cientista político chamado Robert Putnam. Em "Making Democracy Work", ele expõe uma tese interessante sobre o desenvolvimento econômico da Itália. Putnam explica as diferenças de desenvolvimento entre o norte e o sul italianos (equivalentes ao sudeste e ao nordeste brasileiros) não em termos clássicos econômicos, mas, sim, sob o prisma do "capital social". Este seria o patrimônio formado ao longo de séculos de participação popular, de pequenas iniciativas comunitárias como times de futebol, corais de igreja e mais uma série de microatividades que formam uma rede de cidadania.
Essa solidez social (presente no norte da Itália) é que seria responsável pelo grau de desenvolvimento da região, enquanto a cultura personalista e dominadora que imperava no sul só dava certo enquanto havia o caudilho, para depois desintegrar-se numa confusão, em que o clima de responsabilidade compartilhada dava lugar a uma desconfiança geral.
Vendo as centenas de obstinados protestando contra seus governantes por aquilo que achavam minimamente correto -por menor que fosse a causa-, ficou mais fácil entender por que este país dá certo. Lembrei-me das nossas capitanias hereditárias, de Pedro 2º, Getúlio, JK e dos militares, somados às classes média e alta que desprezam e marginalizam os pobres, e por um instante consegui entender o nosso atraso, a desagregação social e o desrespeito pela "res" pública. Tristes trópicos, mesmo. Mais tristes porque têm de lutar não só com o futuro, mas também com um fardo do passado. Sem nem poder contar com os esquilos que correm pelo jardim do Congresso daqui...


Gustavo Ioschpe, 21, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política na University of Pennsylvania, EUA, e- mail: desembucha@cyberdude. com.



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