São Paulo, segunda-feira, 22 de julho de 2002

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Racionais brilham em meio a um universo de excessos

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
COLUNISTA DA FOLHA

Das quebradas sinistras da periferia paulistana, de cara amarrada e com discurso rebelde, o grupo de hip hop Racionais MC's caiu, ironicamente, em uma das armadilhas mais conhecidas na indústria musical, a mesma que já capturou tantas bandas formadas pelos playboys que os Racionais dizem tanto odiar: fizeram um álbum duplo.
Vinte e uma faixas compõem "Nada Como um Dia Após o Outro Dia", o primeiro lançamento dos Racionais, com músicas inéditas, desde o divisor de águas "Sobrevivendo no Inferno" (1997), um dos melhores discos da história da música brasileira.
São 21 faixas, mas não 21 canções. O disco é permeado por vinhetas, fragmentos sonoros e, no fim do segundo disco, uma improvável dedicatória, de mais de seis minutos, em que cada um dos Racionais cita nomes de "trutas" (amigos) e "quebradas" (bairros distantes).
Porque a vida não perdoa, contam-se nos dedos os álbuns duplos que deixaram marca: o álbum branco dos Beatles, "Physical Graffiti", do Led Zeppelin, "London Calling", do Clash e poucos mais.
Ainda assim, apesar do excesso, da auto-indulgência e da infinita bagunça que parece guiar a carreira dos Racionais, "Nada Como um Dia Após o Outro Dia" flutua muito acima do restante da produção nacional de hip hop, porque a poesia do grupo liderado por Mano Brown não é só a melhor do rap nacional: é a melhor sendo feita, hoje, em qualquer ramo da música popular brasileira, e ponto.
A capacidade aguda de observação, os versos exatos, sintéticos, marcas dos Racionais, aparecem com força total. Na fenomenal "Negro Drama", por exemplo, Mano Brown ironiza o burguês/patrão cujo filho adolescente gosta de hip hop: "Inacreditável, mas seu filho me imita/ No meio de vocês, ele é o mais esperto/ Ginga e fala gíria/ Gíria não, dialeto". Na mesma faixa, Brown se apresenta à elite branca: "Sou problema de montão/ De Carnaval a Carnaval/ Eu sou da selva, sou leão/ Sou demais pro seu quintal". Nenhum outro compositor contemporâneo escreve com tanta contundência.
O outro destaque é a épica "V.L." (Vida Loka), dividida em duas partes, uma em cada CD. Não conta uma história específica, mas fala das impressões de um jovem de periferia que sonha com relógio Breitling e "lupa" (óculos) Bausch & Lomb.
Como novidade, os Racionais trazem uma levada bem mais melódica, funkeada, exatamente na linha do ídolo Tupac Shakur (1971-1996), rapper americano citado em diversas faixas. Em relação a "Sobrevivendo no Inferno", a qualidade de produção melhorou muito, embora esteja ainda abaixo do que se poderia esperar de uma banda com tantos anos de estrada, que passou tanto tempo em estúdio, e que contou com a direção técnica (o encarte não traz crédito de produção) do experiente DJ Zé Gonzales, do Planet Hemp.
Outra característica que faz dos Racionais um ponto fora do gráfico da modorrenta MPB dominante no Brasil: as referências desavergonhadamente paulistanas, às vezes difíceis de entender mesmo para quem é da cidade ("Pedreira", por exemplo, é o bairro da Pedreira, periferia sul; "Tobias de Aguiar" é o nome completo da Rota, Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar). Isso não torna os Racionais melhores ou piores, apenas únicos em um cenário (o musical brasileiro) dominado por referências da zona sul do Rio. Em 21 faixas, "Escuta Aqui" detectou apenas uma vez a palavra "mar" e mais outra a palavra "sol".
Resumindo: a qualidade poética dos Racionais se mantém intacta. O nível técnico melhorou. O discurso, paternalista e violentamente ofensivo às mulheres (menos à mãe de Mano Brown, seguidamente elogiada) permanece. E 21 faixas são um número excessivo, o que torna "Nada Como um Dia Após o Outro Dia" irregular, com momentos brilhantes.



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