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Variações sobre a brutalidade do trote
ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha
Todo mundo queria assistir ao
jogo da seleção brasileira naquele
sábado, em maio de 1981. Mas os
calouros do Instituto de Química
da USP não podiam. Tinham de
comparecer a um certo "colóquio
de aferição de nível", em que seriam inquiridos por um suposto
fiscal do Ministério da Educação.
Parecia coisa muito séria: a circular de convocação tinha a assinatura do diretor interino do instituto. E já havia passado o dia 13
de maio, data da libertação do
"bicho" (como os calouros são
chamados em São Paulo). A idéia
de trote estava fora de questão.
O Brasil ainda vivia sob regime
militar, e o clima naquele sábado
de colóquio não nos deixava esquecer disso: o tal "fiscal", sujeito
de ar medíocre e emburrado, tinha a proteção de seguranças
com armas. Se havia ou não balas
naqueles revólveres, nunca soubemos.
Fazia muito calor. Pior para os
alunos do primeiro ano, obrigados a comparecer de avental.
Com calouros e veteranos
amontoados numa sala, deu-se
início ao ritual de humilhação.
Primeiro, para disfarçar, alunos
do segundo ao quarto ano foram
chamados à frente pelo "fiscal".
Seus conhecimentos de química
eram aferidos, e inevitavelmente
o "fiscal" determinava algum tipo de punição. Uma veterana
fingiu desmaiar, depois de "perder" sua licença para dar aulas
no segundo grau.
Mas o clímax foi com o pessoal
do primeiro ano. Um a um, com
medo, em ordem alfabética, éramos chamados para sofrer a degradação pública.
Mas isso só durou até a letra
"C".
Porque começava com "C" o
nome de um calouro de 1,90 m
que decidiu enfrentar aqueles
brucutus. Primeiro, não estava
de avental; vestia uma jardineira.
À ordem para que tirasse as mãos
do bolso, respondeu com um palavrão.
Os seguranças se aproximaram
dele. Mas não contavam com o
seguinte: esse calouro acabava de
sair do Exército e tinha levado,
para mostrar a um colega, uma
faca usada em testes de sobrevivência.
Ao se ver cercado pelos seguranças (que estavam com revólver!), ele puxou a faca e gritou:
"Podem vir!".
Arrastado da sala, reagiu. As
portas foram trancadas e os outros calouros, do lado de dentro,
só escutavam gritos, ruídos que
indicavam luta, urros de ódio.O
""fiscal" tenta prosseguir com o
colóquio. Dura pouco. Uma aluna do primeiro ano se levanta e
grita: "Nosso colega está apanhando lá fora, como vocês querem continuar?".
A tensão aumenta. O ""fiscal",
na verdade um fascistóide que
dava aula em cursinho, percebe
que perdeu o controle, sobe na
mesa e grita: "Calma, gente, era
trote, podem ficar tranquilos, rá-rá-rá!".
Se ele imaginava que assim
aplacaria os ânimos, apostou errado. Um calouro quebra a cotoveladas as janelas de vidros das
portas da sala. Outros empurram
carteiras. Todos gritam e, exceto
meia dúzia de pelegos que cumprimentam o "fiscal", há uma
violenta troca de ofensas.
No dia seguinte, dá-se início a
uma imensa operação de acobertamento. Murais de protesto dos
calouros são arrancados das paredes. O colóquio vira um não-assunto. O calouro que reagiu se vê
obrigado a pedir transferência
para outra faculdade.
O colóquio acabou para sempre.
O Instituto de Química nunca
foi uma das unidades da USP com
maior tradição de violência. Todo
mundo sempre soube dos trotes
animalescos da Escola Politécnica, do Instituto de Geociências,
da Agronomia, da Medicina. Na
minha época, a direção da Atlética da Medicina estava, como dizia
Paulo Francis, à direita de Gengis
Khan. Não sei se mudou.
Se não tivessem acobertado o
festival de brutalidade daquele
sábado de 1981, dia de jogo do
Brasil, talvez os trotes já tivessem
sido extintos na USP.
E Edison Tsung Chi Hsueh poderia estar vivo.
Álvaro Pereira Júnior, 36, chefe de Redação do
"Fantástico", é graduado em química e jornalismo pela USP
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