São Paulo, Segunda-feira, 26 de Abril de 1999
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Variações sobre a brutalidade do trote


ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha

Todo mundo queria assistir ao jogo da seleção brasileira naquele sábado, em maio de 1981. Mas os calouros do Instituto de Química da USP não podiam. Tinham de comparecer a um certo "colóquio de aferição de nível", em que seriam inquiridos por um suposto fiscal do Ministério da Educação.
Parecia coisa muito séria: a circular de convocação tinha a assinatura do diretor interino do instituto. E já havia passado o dia 13 de maio, data da libertação do "bicho" (como os calouros são chamados em São Paulo). A idéia de trote estava fora de questão.
O Brasil ainda vivia sob regime militar, e o clima naquele sábado de colóquio não nos deixava esquecer disso: o tal "fiscal", sujeito de ar medíocre e emburrado, tinha a proteção de seguranças com armas. Se havia ou não balas naqueles revólveres, nunca soubemos.
Fazia muito calor. Pior para os alunos do primeiro ano, obrigados a comparecer de avental.
Com calouros e veteranos amontoados numa sala, deu-se início ao ritual de humilhação. Primeiro, para disfarçar, alunos do segundo ao quarto ano foram chamados à frente pelo "fiscal". Seus conhecimentos de química eram aferidos, e inevitavelmente o "fiscal" determinava algum tipo de punição. Uma veterana fingiu desmaiar, depois de "perder" sua licença para dar aulas no segundo grau.
Mas o clímax foi com o pessoal do primeiro ano. Um a um, com medo, em ordem alfabética, éramos chamados para sofrer a degradação pública.
Mas isso só durou até a letra "C".
Porque começava com "C" o nome de um calouro de 1,90 m que decidiu enfrentar aqueles brucutus. Primeiro, não estava de avental; vestia uma jardineira. À ordem para que tirasse as mãos do bolso, respondeu com um palavrão.
Os seguranças se aproximaram dele. Mas não contavam com o seguinte: esse calouro acabava de sair do Exército e tinha levado, para mostrar a um colega, uma faca usada em testes de sobrevivência.
Ao se ver cercado pelos seguranças (que estavam com revólver!), ele puxou a faca e gritou: "Podem vir!".
Arrastado da sala, reagiu. As portas foram trancadas e os outros calouros, do lado de dentro, só escutavam gritos, ruídos que indicavam luta, urros de ódio.O ""fiscal" tenta prosseguir com o colóquio. Dura pouco. Uma aluna do primeiro ano se levanta e grita: "Nosso colega está apanhando lá fora, como vocês querem continuar?".
A tensão aumenta. O ""fiscal", na verdade um fascistóide que dava aula em cursinho, percebe que perdeu o controle, sobe na mesa e grita: "Calma, gente, era trote, podem ficar tranquilos, rá-rá-rá!".
Se ele imaginava que assim aplacaria os ânimos, apostou errado. Um calouro quebra a cotoveladas as janelas de vidros das portas da sala. Outros empurram carteiras. Todos gritam e, exceto meia dúzia de pelegos que cumprimentam o "fiscal", há uma violenta troca de ofensas.
No dia seguinte, dá-se início a uma imensa operação de acobertamento. Murais de protesto dos calouros são arrancados das paredes. O colóquio vira um não-assunto. O calouro que reagiu se vê obrigado a pedir transferência para outra faculdade.
O colóquio acabou para sempre.
O Instituto de Química nunca foi uma das unidades da USP com maior tradição de violência. Todo mundo sempre soube dos trotes animalescos da Escola Politécnica, do Instituto de Geociências, da Agronomia, da Medicina. Na minha época, a direção da Atlética da Medicina estava, como dizia Paulo Francis, à direita de Gengis Khan. Não sei se mudou.
Se não tivessem acobertado o festival de brutalidade daquele sábado de 1981, dia de jogo do Brasil, talvez os trotes já tivessem sido extintos na USP.
E Edison Tsung Chi Hsueh poderia estar vivo.


Álvaro Pereira Júnior, 36, chefe de Redação do "Fantástico", é graduado em química e jornalismo pela USP


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