São Paulo, Segunda-feira, 26 de Abril de 1999
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"Não existe futuro na Iugoslávia" Jovens de Belgrado contam como é viver num país em guerra, com as aulas suspensas, poucas oportunidades de trabalho e até a expectativa de ter de lutar no conflito
KENNEDY ALENCAR
enviado especial a Belgrado

Os jovens iugoslavos temem o futuro, que acham que vai ser pior do que o presente. A guerra interrompeu as aulas, que não têm data para recomeçar. A infra-estrutura do país está sendo destruída e cresce o medo de que demore anos para se viver em paz e prosperidade.
"Lutei com a minha consciência nos últimos dias. Nada vai mudar para melhor a curto prazo. Decidi deixar a Iugoslávia", diz Tijana Zivanovic, 24, que anteontem tentaria mais uma vez sair do país, pela cidade de Tulza, na Bósnia. No último dia 17, ela foi barrada na fronteira com a Bulgária (veja mapa).
Tijana queria ir para a França, encontrar o namorado peruano, mas as autoridades búlgaras não a deixaram entrar no país. Era a única no trem com passaporte iugoslavo: "Fomos excluídos do mundo, não consigo me inscrever para uma bolsa de estudo".
Ela trabalha voluntariamente na Campanha Anti-Guerra, um movimento com cerca de 20 jovens europeus que enviam mensagens pela Internet a outros jovens - uma delas foi publicada na capa do Folhateen de 29/3-, a governos, à imprensa e a organizações não-governamentais.
Participou das manifestações contra o governo entre dezembro de 96 e fevereiro de 97, mas acha que o bombardeio da Otan fortaleceu o presidente Slobodan Milosevic. "Às vezes, acho que a Otan está trabalhando com o Milosevic. Vão destruir o país, mas não o governo, que tem o apoio da maioria do povo agora."
Tijana está no último ano da faculdade de urbanismo, mas pensa em acabar os estudos fora do país. Reclama que já está cansada de ficar em casa. Desistiu de ir aos concertos de rock no centro de Belgrado depois de ter visto cartazes do presidente Slobodan Milosevic e do líder nacionalista extremista Zeljko Raznatovic.
Mais conhecido como Arkan, Raznatovic é acusado pelo Tribunal de Haia de cometer atrocidades na Guerra da Bósnia (92-95). Há suspeita de que o grupo paramilitar Tigres da Sérvia, que ele nega liderar, tenha atacado recentemente civis de etnia albanesa na Província de Kosovo.

Estado de guerra
Ao contrário de Tijana, Vladimir Curuvija, 17, frequenta os concertos de rock na praça da República, que começaram espontaneamente e hoje se transformaram em pura propaganda do ditador Milosevic. Mas ele diz que não gosta "de política nem de políticos".
Fã do Oasis, a banda de rock inglesa, sonha, "quando a guerra terminar", em ir para a Inglaterra (um dos 19 países que compõem a Otan, Organização do Tratado do Atlântico Norte). "Estou com raiva dos ingleses porque estão jogando bombas sobre nós, mas eles têm um som ótimo. Gostaria de estudar música lá." Curuvija, que está aprendendo a tocar baixo, está no último ano do ensino médio.
E se o conflito com a Otan durar meses e ele for obrigado a ir para o Exército Iugoslavo? "Não gosto da idéia, mas não poderei fazer nada. Todos terão de ir", diz, olhando para baixo. Os homens entre 18 e 60 anos estão proibidos de sair do país. Foi decretado estado de guerra. Em tese, todos podem ser convocados para lutar no conflito com a Otan, que começou em 24 de março (confira texto ao lado).
É num tom triste que a secretária do Partido Democrático da Sérvia, de oposição a Milosevic, Marijana Pavlovic, 24, diz: "Não existe futuro na Iugoslávia. Estamos ficando cada vez mais pobres". Segundo ela, a decadência do padrão de vida nos últimos dez anos (crises econômicas e políticas cíclicas) tornou os jovens mais egoístas.
"Na universidade, os garotos e as garotas procuram se aproximar de quem tem algo a oferecer. Se você tem um carro bonito, usa roupas novas e viaja para a Grécia no verão, terá muitos amigos", diz Marijana, estudante do penúltimo ano de pedagogia para adultos.
Segundo Marijana, está cada vez mais difícil para os jovens encontrar um emprego e sair de casa. Ela ganha cerca de 200 marcos alemães (moeda que é a referência no país, como o dólar no Brasil). Com o salário de cerca de R$ 185, se diz obrigada a morar com os pais. "O dinheiro de todos mantém a casa."

Vida vai ficar pior
Já o jovem Rale (apelido de Radosav Milosevic), 16, diz que os pais estão mais preocupados com a guerra do que ele. "Acho bom não ter aulas, o que sinto é falta dos amigos e de jogar futebol". Ele também frequenta os concertos de rock. Como Marijana, reclama de ter de ficar em casa à noite. Os pais não os deixam sair.
Rale conta que a irmã mais nova ficou assustada quando uma bomba caiu perto de sua casa, e que ela está com dificuldade para dormir. "Eu durmo bem." Ele vive em Zvezdara, subúrbio de Belgrado. Na região, a Otan atacou uma antena de transmissão.
Para Rale, a guerra vai piorar ainda mais a vida no país. "Mas já estava ruim antes", diz. Não sabe o que vai estudar na faculdade. "Fica difícil responder a isso com uma guerra acontecendo. Não sei se a Otan vai deixar em pé a universidade", afirma, rindo.
Depois, sério, diz ter vontade de ser engenheiro mecânico, porque gosta de carros e de desenhá-los. E volta a brincar, ironizando a grande quantidade de veículos com mais de 20 anos que circulam caindo aos pedaços pelo centro de Belgrado: "Não gosto desses carros velhos aqui da cidade, mas de Ferraris ou Porshes".


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