São Paulo, Segunda-feira, 29 de Março de 1999
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free way
Vai um lixinho aí, tio?

GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha

Não sei o que é mais triste: se o ótimo "Central do Brasil" ter perdido o Oscar para o comercial e superficialóide "La Vita è Bella" ou o fato de os brasileiros torcerem e depois ficarem acabrunhados com a perda da estatueta. O Oscar, tanto por aquilo que representa -uma indústria cinematográfica, o que já é um oxímoro deprimente-quanto por sua própria iconografia -aquela estatueta rombuda, revestida do dourado típico da breguice americana-, vem simbolizar a inelutável rendição de todos nós, periféricos, à indústria do lixo que nos exportam.
Já é uma involução histórica: no começo, exportávamos minério e recebíamos produtos acabados, depois vendíamos produtos agrícolas e recebíamos bens industrializados ou capital, hoje exportamos sensibilidade e importamos porcaria.
É uma tradição histórica do brasileiro: nunca nos revoltamos contra ninguém, nunca tivemos uma ruptura histórica que permitisse a criação de uma identidade nacional. Assim, ficamos capengando pela falta de amor-próprio nacional e pegamos emprestados dos outros -quem deu certo- suas características. E, quando estas não são imitáveis, ficamos pelo menos com o cacoete.
Um passeio pelas ruas e pelos colégios brasileiros é a mostra do pior colonialismo que existe, que é a condição de rebaixado e feliz. Assim, vêem-se os guris usando como símbolo de status os mesmos bonés e camisetas de time e os tênis Nike que aqui são usados pelos remendados dos guetos de hispânicos e negros. As lojas brasileiras vendem tudo em "sale", os filmes vistos aí são essa paçoca debilóide, que não faz sentido pra quem mora aqui, quanto mais para os tupinambás. Nos esportes, o país de baixinhos que é o nosso sonha em ser a segunda pátria do basquete, idolatrando a NBA. Os boys usam as calças e camisas da Guess, símbolos de opulência aí e de mau gosto barato por aqui, e, antes de sair, tomam a chocha Budweiser (putz, que saudade de uma Antártica). Dos carros, então, nem se fala: pagavam-se uns 70 mil dólares por carro que aqui não custa nem 30 mil. A TV, que por si só sempre foi bem fraquinha, agora entrou na onda de retransmitir os infames "sitcoms" daqui, e assim ficam os brasileiros prostrados em frente às suas telinhas, vendo os "Seinfeld" e "Friends" da vida, monumentos que são a todos os cabeças ocas do mundo. Até o telejornalismo nacional, que sempre manteve um nível admirável dadas as condições locais, vem caindo na vala comum do "entretenimento", e dê-lhe primeira mamada da filha da Xuxa, primeira espinha de uma taturana em cativeiro e demais irrelevâncias mundo afora.
Sair à noite pra dançar, então, é um deus-nos-acuda: ensanduichado entre uma música baiana, mandando segurar não sei o quê e girar não sei qual outro, e as batidas monocórdias importadas daqui, só resta ao coitado festeiro ir aproveitar o único monumento brasileiro que permanece sem silicone: a mulher. No campo da música pop, pelo menos temos uma vantagem: ao contrário do cinema e da TV, em relação aos quais se espera alguns anos para que o pastelão chegue velho e, ainda por cima, dublado (aaai), temos o privilégio de repartir o lixo quase que simultaneamente e ouvir fanaticamente a mesma porcaria pré-fabricada por meia dúzia de marqueteiros das gravadoras.
Tristes sinais de um povo que, depois de quase 500 anos, não se encontrou com a sua alma. Aliás, minto: o povo está bem, obrigado, quem fica nessas de ir dormir codorna e acordar faisão são as elites, sempre alheias ao andar de baixo e maravilhadas com a "mudernidade" dos daqui.
Não tem nada, não. É só deixar esse pessoal falar sozinho. Quando abrirem a boca, dê um desconto. Assim, uns 50% off.


Gustavo Ioschpe, 22, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política na University of Pennsylvania, EUA, e-mail: desembucha@cyberdude.com


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