São Paulo, segunda-feira, 30 de agosto de 2004

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CINEMA

Tenha medo, tenha muuuuuuito medo

Filmes de terror e suspense dão o que pensar sobre a relação entre os norte-americanos e seus temores; por aqui, produções desembarcam trazendo muitos sustos e algumas decepções

A.O. SCOTT
DO "NEW YORK TIMES"

Nos EUA, avisos de ameaças de ataques terroristas são acompanhados por instruções confusas do governo de ignorar o perigo e continuar com a rotina diária. Mas, se os políticos dizem que não temos nada a temer, a indústria do entretenimento nos envia a mensagem oposta: "Tenham medo! Tenham muito medo!"
A Warner Brothers e a Disney lançaram dois filmes para assustar: o remake dirigido por Jonathan Demme de "Sob o Domínio do Mal" (estréia no Brasil no dia 5/11), recriando o espectro de uma conspiração empresarial, e o mais recente suspense de M. Night Shyamalan, "A Vila" (leia ao lado), que traz monstros indescritíveis que se ocultam nos bosques da Pensilvânia.
Depois, vieram "Colateral" (em cartaz no Brasil), de Michael Mann, em que um taxista é aterrorizado por um assassino, e "Open Water", de Chris Kentis, em que mergulhadores são ameaçados por tubarões.
Será a temporada mais assustadora da história -em termos de cinema? Para mim, nenhum dos filmes lançados desde maio foi tão assustador quanto "Extermínio", de 2003, nem funcionou tão bem como suspense quanto "Os Outros", de 2001. Mas parece que agora estamos vendo um número acima da média de filmes que fazem do medo o seu tema. Até uma nova versão de "O Exorcista" está em cartaz nos EUA (sem data prevista para estrear aqui).
O filme de Jonathan Demme procura provocar paranóia e analisá-la. Shyamalan nos manipula para nos induzir a um estado de terror ansioso, antes de anunciar que essa manipulação não é apenas seu método, mas também seu tema. Ela é também um dos assuntos de "Fahrenheit 11 de Setembro", que sugere que o governo Bush vem assustando o público americano muito mais do que o protege contra ameaças reais. A lista de filmes que desencadeiam os reflexos de medo e tecem reflexões sobre nossa suscetibilidade poderia até incluir um entretenimento juvenil como "Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban".
"Harry Potter" traz seres assustadores: os dementores, que podem ser figuras emblemáticas de uma época em que, ao que parece, temos tudo a temer. Os dementores praticam uma forma de terror íntima, orwelliana, sugando todos os vestígios de esperança das almas das vítimas. O que os torna especialmente sinistros é que fazem parte do sistema de policiamento do mundo dos magos, aterrorizando os inocentes para protegê-los contra os culpados.
Os monstros da floresta que assombram "A Vila" poderiam ser primos dos dementores -o fato de que se faz referência a eles como "aqueles dos quais não falamos" também os aproxima do arquivilão da série Potter, Voldemort, mais conhecido como "aquele cujo nome não deve ser dito".
O medo provocado pelo cinema sempre foi paradoxal, ao mesmo tempo fornecendo um meio de fuga da vida real e de reflexão sobre ela. Hoje sabemos que os alienígenas dos filmes b dos anos 50 representam os comunistas -ou, quem sabe, os anticomunistas exagerados. Ou a bomba atômica. Ou todas as alternativas anteriores.
Se esses filmes ajudaram a acalmar o medo do público ou a instigá-lo é uma questão. Provavelmente as duas coisas, já que o medo é a mais contraditória das emoções. É instintiva e racional, residente ao mesmo tempo nos recessos mais profundos de nossos cérebros animais, quando a aproximação de um predador potencial desencadeia o reflexo de fuga ou combate de nosso sistema nervoso autônomo, ou no ápice de nossa racionalidade, quando calculamos fatores de risco e avaliamos estatísticas num tipo diferente de sistema nervoso.
O cinema nos oferece uma chance de explorar essas complicações emocionais numa zona de segurança. Afinal, o que acontece na tela nunca poderá nos alcançar e não vai demorar a chegar ao fim. Mas será que o cinema também pode nos oferecer alguma ajuda para enfrentarmos os terrores reais que nos afligem?


Tradução de Clara Allain

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