|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CINEMA
Tenha medo, tenha muuuuuuito medo
Filmes de terror e suspense dão o que pensar sobre a relação
entre os norte-americanos e seus temores; por aqui, produções desembarcam trazendo muitos sustos e algumas decepções
A.O. SCOTT
DO "NEW YORK TIMES"
Nos EUA, avisos de ameaças de ataques terroristas são acompanhados
por instruções confusas do governo de ignorar o perigo e continuar com a
rotina diária. Mas, se os políticos dizem que
não temos nada a temer, a indústria do entretenimento nos envia a mensagem oposta: "Tenham medo! Tenham muito medo!"
A Warner Brothers e a Disney lançaram
dois filmes para assustar: o remake dirigido
por Jonathan Demme de "Sob o Domínio
do Mal" (estréia no Brasil no dia 5/11), recriando o espectro de uma conspiração
empresarial, e o mais recente suspense de
M. Night Shyamalan, "A Vila" (leia ao lado), que traz monstros indescritíveis que se
ocultam nos bosques da Pensilvânia.
Depois, vieram "Colateral" (em cartaz no
Brasil), de Michael Mann, em que um taxista é aterrorizado por um assassino, e "Open
Water", de Chris Kentis, em que mergulhadores são ameaçados por tubarões.
Será a temporada mais assustadora da
história -em termos de cinema? Para
mim, nenhum dos filmes lançados desde
maio foi tão assustador quanto "Extermínio", de 2003, nem funcionou tão bem como suspense quanto "Os Outros", de 2001.
Mas parece que agora estamos vendo um
número acima da média de filmes que fazem do medo o seu tema. Até uma nova
versão de "O Exorcista" está em cartaz nos
EUA (sem data prevista para estrear aqui).
O filme de Jonathan Demme procura
provocar paranóia e analisá-la. Shyamalan
nos manipula para nos induzir a um estado
de terror ansioso, antes de anunciar que essa manipulação não é apenas seu método,
mas também seu tema. Ela é também um
dos assuntos de "Fahrenheit 11 de Setembro", que sugere que o governo Bush vem
assustando o público americano muito
mais do que o protege contra ameaças
reais. A lista de filmes que desencadeiam os
reflexos de medo e tecem reflexões sobre
nossa suscetibilidade poderia até incluir
um entretenimento juvenil como "Harry
Potter e o Prisioneiro de Azkaban".
"Harry Potter" traz seres assustadores: os
dementores, que podem ser figuras emblemáticas de uma época em que, ao que parece, temos tudo a temer. Os dementores praticam uma forma de terror íntima, orwelliana, sugando todos os vestígios de esperança das almas das vítimas. O que os torna
especialmente sinistros é que fazem parte
do sistema de policiamento do mundo dos
magos, aterrorizando os inocentes para
protegê-los contra os culpados.
Os monstros da floresta que assombram
"A Vila" poderiam ser primos dos dementores -o fato de que se faz referência a eles
como "aqueles dos quais não falamos"
também os aproxima do arquivilão da série
Potter, Voldemort, mais conhecido como
"aquele cujo nome não deve ser dito".
O medo provocado pelo cinema sempre
foi paradoxal, ao mesmo tempo fornecendo um meio de fuga da vida real e de reflexão sobre ela. Hoje sabemos que os alienígenas dos filmes b dos anos 50 representam
os comunistas -ou, quem sabe, os anticomunistas exagerados. Ou a bomba atômica. Ou todas as alternativas anteriores.
Se esses filmes ajudaram a acalmar o medo do público ou a instigá-lo é uma questão. Provavelmente as duas coisas, já que o
medo é a mais contraditória das emoções.
É instintiva e racional, residente ao mesmo
tempo nos recessos mais profundos de
nossos cérebros animais, quando a aproximação de um predador potencial desencadeia o reflexo de fuga ou combate de nosso
sistema nervoso autônomo, ou no ápice de
nossa racionalidade, quando calculamos
fatores de risco e avaliamos estatísticas
num tipo diferente de sistema nervoso.
O cinema nos oferece uma chance de explorar essas complicações emocionais numa zona de segurança. Afinal, o que acontece na tela nunca poderá nos alcançar e
não vai demorar a chegar ao fim. Mas será
que o cinema também pode nos oferecer
alguma ajuda para enfrentarmos os terrores reais que nos afligem?
Tradução de Clara Allain
Texto Anterior: Livros Próximo Texto: Monstros sem charme Índice
|