São Paulo, Sexta-feira, 03 de Dezembro de 1999
 
 

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RESUMINDO - "VIDAS SECAS"
Romance concilia a denúncia social com a qualidade artística

FRANCISCO ACHCAR
especial para a Folha

"Vidas Secas" (1938), de Graciliano Ramos (1892-1953), é a história de uma família de retirantes, que, paradoxalmente, não chega a constituir uma história. A dura andança, sob a implacabilidade da seca, de certa forma justifica a inutilidade da comunicação entre os membros da família, como justifica a falta de nomes para os filhos, as dificuldades linguísticas do pai, Fabiano, e a inquietação constante. Justifica também o sacrifício do papagaio, que tinha acompanhado a família e veio a transformar-se em alimento providencial. Não bastassem tais infortúnios, Fabiano vem a ser preso pelo "soldado amarelo", símbolo do autoritarismo local.
Ao contrário de Fabiano, que se mostra matuto em tudo, sua mulher, Sinha Vitória, apresenta sinais de ter vindo de um meio social menos duro. Baleia, a cachorra, consegue sentir e reagir com inteligência superior à média dos animais. Sua "humanização" progressiva acompanha a também progressiva "animalização" dos membros da família. Embora se revolte contra as contas do patrão, Fabiano tem de aceitá-las para não perder o emprego. Seu reencontro com o soldado amarelo, depois, em plena caatinga, faz-lhe reconhecer sua própria superioridade. Acaba perdoando, ensinando ao soldado o caminho de volta.
A temida seca enfim está chegando. As árvores se enchem de aves de arribação. Fabiano recomeça a analisar sua vida. Quem lhe dá ânimo é Sinha Vitória. Os retirantes deixam a casa da fazenda e retomam o caminho de sempre.
No pensamento de Fabiano brilha uma certa esperança, estimulada pelas promessas de chegar ao sul do país. Mas a perspectiva que vem do narrador é a da contínua andança, sem definição e sem destino certo.
A secura é a dominante da obra: secas são não só as vidas das personagens e as paisagens que atravessam, mas também a linguagem do livro. As frases são curtas, lacônicas, o vocabulário é mínimo, a própria montagem da narrativa é esquelética, feita de quadros que se reduzem a si mesmos, sem se articular no desenho mais amplo de uma história, pois esta também parece faltar àqueles magros retirantes.
"Vidas Secas" é um romance afortunado. Além das inúmeras traduções, tem conhecido o aplauso tanto do público quanto da crítica. Isto se deve a várias qualidades do livro. A principal é que ele sintetiza a tragédia social brasileira no sertão nordestino, com uma linguagem levada aos limites da concisão e do aprimoramento, estilo que consegue ser artístico sem a menor afetação.
Quais os defeitos que Graciliano Ramos conseguiu evitar? Um deles seria usar a tradicional ornamentação da natureza. A natureza em "Vidas Secas" é enxuta, áspera e limitada ao necessário. Está sempre diante de nós, mas nunca é enfática. Outro dos males do regionalismo, também contornado em "Vidas Secas", são as ingerências do narrador opiniático, que poderiam reduzir a obra a um panfleto político. Graciliano pinta os quadros patéticos da família ambulante sem dar a seu livro o caráter panfletário, de escrito de protesto, tão comum no chamado "realismo socialista", em grande voga nos anos 30.
Entre as novidades do livro, conta-se a capacidade de mostrar, sem demagogia, como a miséria não é incompatível com um certo heroísmo. A tenacidade de Fabiano é discreta, mas firme. Ele consegue "dialogar" astuciosamente com as adversidades do meio natural e humano. Para sobreviver nesse meio, é preciso dispor de um atento instinto animal, é preciso estar sempre desperto para as variações da circunstância.
Fabiano tem uma família para salvar.
Do ponto de vista artístico e composicional, talvez a qualidade mais impressionante de "Vidas Secas" seja a combinação da uniformidade, que simula a monotonia, com a variação, que sugere o perigo. A uniformidade se exprime na frequência das frases coordenadas e períodos curtos. E a variação vai sendo efetivada na pormenorização constante de objetos, gestos e percepções, que sempre surpreendem.
Quanto à posição do narrador, Graciliano optou pelo foco narrativo de terceira pessoa, mas não quis limitar-se a uma pintura exata e expressiva. Para dar a impressão do fluxo, procurou aproximar-se da técnica das tomadas cinematográficas, que são depois compostas no movimento do filme. Mas precisava, por outro lado, "captar" as contorções ou fiapos de pensamento das personagens. Era preciso dar voz ao mundo interior daqueles oprimidos que nem mesmo possuíam recursos para formular em linguagem plena a sua vida angustiosa. É aí que o narrador deixa de ser como um foco de câmera e entra com sua onisciência, ou seja, sua técnica de insinuar-se "por dentro" das personagens. Através de discurso indireto livre, ele revela a intimidade delas (seus pensamentos, emoções, desejos) em sua relação com aspectos práticos da existência. Simples, precária, esta intimidade é constituída quase sempre de um cálculo, uma estimativa sobre as circunstâncias, que indica algum otimismo e vontade de vencer.
Acrescente-se, ainda, que, sem se afastar da simplicidade e da correção sintática (nem poderia ser de outro modo), o narrador vai constantemente apresentando notações regionais, que dão ao livro seu clima de geografia humana, imprescindível ao êxito de qualquer regionalismo realista.


Francisco Achcar, autor de "Lírica e Lugar-comum" (Edusp), é professor de língua e literatura latina na Unicamp e coordenador de português do Curso e Colégio Objetivo.


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