São Paulo, quinta-feira, 07 de outubro de 2004
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LITERATURA

"A Igreja do Diabo" foca o relativismo de valores

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O conto "A Igreja do Diabo", inserido na coletânea "Histórias sem Data" (1884), é um dos mais bem-acabados textos de Machado de Assis, cuja leitura é tida como obrigatória àqueles que desejam conhecer a veia irônica do autor. A narrativa, convite à reflexão sobre o caráter do ser humano, já teve um excerto sugerido como tema de redação na Fuvest.
Trata-se de alegoria em que o Diabo decide fundar uma igreja. Faz uma espécie de retrato em negativo da Igreja Católica (a "igreja de Deus"). Negar será seu modo de afirmar: "Há muitos modos de afirmar, há só um de negar tudo". No entender do Diabo, o universal está na negação. A negação tem um poder catalisador e, portanto, une, enquanto a afirmação divide. O Diabo anseia pela institucionalização de seus valores já disseminados entre os homens. Deseja organizar regras, definir cânones, enfim, criar um ritual tal qual o da Igreja Católica.
A igreja do Diabo será, no entanto, despojada de conteúdo simbólico. O vinho e o pão, distribuídos à farta, serão apenas elementos materiais. A doutrina do Diabo retirará dos homens a culpa (tão cara ao cristianismo) para que exerçam sua natural índole materialista.
O Diabo, com sua fala retórica, desenvolve uma engenhosa parábola, em que transforma os antigos vícios -a soberba, a luxúria, a gula etc.- em virtudes. A avareza é a "mãe da economia", a inveja é a "virtude primordial". A demonstração mais eloqüente de sua teoria aparece na defesa da venalidade: "Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, cousas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, cousas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório".
Ocorre que, embora o Diabo angarie muitas adesões à sua doutrina, os seus "fiéis", pouco a pouco, passam a contrariar os princípios da nova igreja. Donde os homens talvez tenham a necessidade de instituir para efeito público um valor diferente daquele que usam no cotidiano.
A ideologia protege no plano da instituição os valores praticados, mas a espécie humana não pode prescindir da diferença entre o valor institucional e o individual. Assim, impõe-se a fraude -que o Diabo definia como "o braço esquerdo do homem" para, depois, concluir que "muitos homens são canhotos". Vale uma reflexão sobre a necessidade que o homem tem de burlar.


Thaís Nicoleti de Camargo é consultora de língua portuguesa da Folha e autora dos livros "Redação Linha a Linha" (Publifolha) e "Uso da Vírgula" (Manole).
E-mail: tnicoleti@folhasp.com.br


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