São Paulo, quinta-feira, 21 de outubro de 2004
  Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LITERATURA

Livro de Bandeira assinala ruptura

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O livro "Libertinagem" (1930), de Manuel Bandeira, é uma das obras selecionadas pelo exame da Fuvest. A leitura de um livro de poemas pode parecer, à primeira vista, mais difícil que a de romances ou contos. Afinal, na maior parte das vezes, os poemas não são narrativas lineares -em geral, condensam grande quantidade de conteúdo simbólico e desafiam o leitor a fazer associações e a ler num plano metafórico.
A apreensão dos múltiplos significados de um poema dá-se não só pelo caminho da intelecção como também pelo do aprimoramento da sensibilidade. Por isso é importante tanto conhecer o período histórico e os pressupostos teóricos da obra como tentar desenvolver com ela o sentimento de empatia, que é a faculdade de compreender emocionalmente o objeto artístico.
Vários dos poemas de "Libertinagem", livro escrito no auge do modernismo brasileiro, tornaram-se muito conhecidos. É o caso de "Vou-me embora pra Pasárgada", em que o eu lírico se projeta -em ânsia escapista- em um universo imaginário e edênico, lugar de encontro com a felicidade perdida e/ou jamais alcançada, ou mesmo de "Pneumotórax", texto que, em tom de prosa, reproduz o desesperançado diagnóstico médico que condenaria o tuberculoso a conviver com a presença da morte por toda a vida: "A única coisa a fazer é tocar um tango argentino".
É ainda desse livro o poema "Poética", em que Bandeira sintetiza os ideais modernistas de ruptura com os cânones do passado (convertidos em fórmulas) e de busca de um lirismo próprio, "o lirismo dos loucos/ O lirismo dos bêbedos/ O lirismo difícil e pungente dos bêbedos". Nesse poema, critica o ideário parnasiano e seu artificialismo, que aparta a poesia da experiência, esta, afinal, a matéria-prima daquela.
A aproximação entre a linguagem cotidiana e a linguagem poética, outra bandeira dos modernistas, é explicitada não só em "Poética" ("Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo// Abaixo os puristas// Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais/ Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção/ Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis") mas também em "Evocação do Recife" ("A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros/ Vinha da boca do povo na língua errada do povo/ Língua certa do povo/ Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil").
A leitura de Bandeira, para além do vestibular, é um prazer.


Thaís Nicoleti de Camargo é consultora de língua portuguesa da Folha e autora dos livros "Redação Linha a Linha" (Publifolha) e "Uso da Vírgula" (Manole).
E-mail: tnicoleti@folhasp.com.br


Texto Anterior: Geografia: Fluxos migratórios
Próximo Texto: Física: A incerteza na física
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.