São Paulo, quinta-feira, 31 de outubro de 2002
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PORTUGUÊS

"Erro de português" é questão polêmica

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

É comum que se tenda a avaliar um texto ou a competência lingüística de alguém por meio de uma quantificação dos chamados "erros de português". Em outras palavras, não são raras as vezes em que se superestima o que há de mais superficial no processo de elaboração de um discurso. O que se considera "erro", entretanto, depende do padrão tomado como referência e está longe de ser uma questão objetiva.
Alguns "erros", tidos como grosseiros, são constante motivo de chacota. Há quem se exalte e diga padecer da mais terrível dor de ouvidos ao escutar alguma expressão diversa daquelas com que se habituou. Esse comportamento não revela mais que o desejo de afirmar uma suposta superioridade sobre os demais num mundo de desigualdades.
Parece engraçado que alguém diga "nós vai lá" ou "os menino", por exemplo. Mas quem se ri dessas formas de expressão o faz simplesmente pelo fato de serem construções alheias ao seu repertório. A tomar como padrão a gramática tradicional, será difícil encontrar alguém que não "erre". E, mesmo assim, não falta quem se dê o direito de discriminar aqueles que "erram" de modo diverso do seu.
A atitude mais isenta e científica é a de quem procura investigar a natureza da expressão -sobretudo se se trata de construção disseminada, e não de uma ocorrência fortuita. Um enunciado como "nós vai" em si nada tem de engraçado. É pleno de sentido -e só por isso se constitui em alternativa. A língua contém estruturas redundantes (as chamadas concordâncias), que, intuídas pelos falantes, são automaticamente suprimidas, num legítimo processo de simplificação. Em uma frase como "nós vamos", o pronome "nós" "já indica qual é o sujeito; daí a desinência "-mos" ser percebida como desnecessária. Em "os menino", é a presença do artigo no plural que assinala a flexão de número do substantivo. Se fossem agramaticais, essas estruturas não seriam compreendidas.
Ora, isso quer dizer que devemos deixar de dizer "nós vamos" por ser redundante? É claro que não. Trata-se de mudar o olhar sobre o fenômeno da língua -que é social e manifesta-se por meio dos falantes. Atribuir ignorância ou falta de inteligência a alguém com base na variante lingüística de que se serve é, no mínimo, leviandade. E esse é um assunto sério em um país das dimensões do nosso, com regiões e falares tão distintos entre si. Há múltiplas expressões, cada uma contribuindo a seu modo para a fixação de uma das culturas mais criativas do planeta.
Os verdadeiros problemas de um texto são as falhas de raciocínio, pois estas é que revelam a dificuldade de elaboração e de comunicação do pensamento.


Thaís Nicoleti de Camargo é consultora de língua portuguesa da Folha



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